Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Neuro-meteorologia


Ouço o rumor fascista da chuva
E depois vejo a paisagem morrendo
Sob a lágrima outonal
Em mim.

A depressão aparece em forma de gotas
Mas é gasoso o seu abraço seguinte
Pele e coração adentro
Serpenteando.

O fim do Verão é um veneno mortal
Este vento sou eu gemendo as saudades
Da praia feliz e da limpa luz
De Coimbra.

Ribeira de Pena, 26 de Setembro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.doyoudrinkcoffee.blogspot.com.]

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

António Ramos Rosa

 



Morreu ontem, mas não bem, António Ramos Rosa. Digo que não bem morreu porque este homem escreveu. Melhor: porque este homem escreveu muitas e lindas páginas. Creio que a literatura, se for mesmo boa, é razoavelmente imorredoira. E é esse pedaço de Ramos Rosa que foge, afinal, à escravidão da notícia de sua morte.
Há vinte anos, numa das Escolas onde lecionei, tive cinco alunos espanhóis, beneficiários de um qualquer programa de intercâmbio. Foram, durante um período letivo, estudantes verdadeiramente interessados e meritórios. Lembro-me de, à despedida, ter oferecido, a cada um deles, um livrinho de poemas. O autor era - adivinhais - António Ramos Rosa. Esse será, talvez, um eficaz testemunho da admiração que nutro, desde há muito, por este nosso poeta (tão) solar.
Na minha dissertação de doutoramento, tive oportunidade de o citar, a propósito de um belíssimo poema, intitulado “O horizonte das palavras”. Aí, António Ramos Rosa explica a pulsão da escrita como a tentativa aturada, constante, sistemática, dedicada e inevitável de encontrar as palavras que digam o mundo, o nosso mundo, e nos digam a nós no mundo. As palavras não substituem o mundo, sublinhe-se; mas são uma necessidade para encontrar uma linguagem, uma estratégia, um equilíbrio, um alvor, um horizonte de verdade essencial que anima quem escreve (e, em sendo bem sucedida a comunicação, quem lê):
 
Eu sou agora o que a linguagem mostra
nas suas verdes estratégias, nas suas pontes
de música visual: o equilíbrio preenche os buracos
com arcos, colinas e com árvores.
Um alvor nasceu nas palavras e nos montes.
O impronunciável é o horizonte do que é dito.



(Cf. António Ramos Rosa, Acordes, Quetzal Editores 1990, 2.ª edição, p. 81.)

 

Adeus, mas não bem adeus, António Ramos Rosa.
 
Cabeceiras de Basto, 25 de Setembro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho



 

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Talvez hipérbole


Ouço, durante algum do entardecer, à mesa de um Café, certo velho queixando-se dos governantes: o roubo de reforma, os serviços cortados na vila, o preço dos medicamentos, a filha desempregada. Percebo que há ali um crescendo lírico-nervoso. O homem acaba mesmo por desabafar, numa espécie de nostalgia revolucionária:
"Isto era pegar no governo todo e lançá-lo ao mar!"
Depois, como se se arrependesse do volume e da violência do enunciado, acrescenta, olhando de viés para mim:
"Que eu, diga-se, não tenho nada contra o mar..."

Ribeira de Pena, 18 de Setembro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho

Ser poeta


O poeta é um ser que nasce com a necessidade de dizer, dizendo-se. A sua linguagem, como a sua vida, tende a alimentar-se das várias vidas que vai conhecendo e da sua própria - e, por outro lado, a alimentar, com essa sua vida e as que vai (a seu modo) fazendo suas, as vidas dos outros homens.
Vive-se, vê-se, sente-se, diz-se. De muitas pobrezas, diria, se faz a riqueza do poema feito.
Em Mar me quer, de Mia Couto (Lisboa, Ed. Caminho, 2000), aí pela página 47, leio:
"O caracol se parece com o poeta: lava a língua no caminho da sua viagem."

Cabeceiras de Basto, 19 de Setembro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Higiene poética


Lave-se o poema, isto é,
Salve-se o poema de todo o banzé
Retórico palavroso e vão, ou seja,
De todo o falar que dizer não seja.

Arco de Baúlhe, 13 de Setembro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.verdadeexpressa.blogspot.com.]

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Realidade não


A realidade mundial está cheia de percentagens, de estatísticas, de gráficos, de metas e objectivos, de folhas apaneleiradas de Excell, de índices, de previsões, de projectos dejectos abjectos.
A realidade é, ao entardecer da vida, um nojo.

Viajar, portanto, pela linguagem, até muito fora daqui!

Ribeira de Pena, 06 de Setembro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho

Restos


Sorvo os restos do Verão como a velhinha que colhe da fruteira, na cozinha, os últimos frutos, expurgando-os pacientemente da podridão e do pó.

Cabeceiras de Basto, 04 de Setembro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Bens essenciais


Pago, como a maioria de quem ainda tem emprego, os meus compromissos com o salário de cada mês: renda de casa, alimentação, gasóleo, empréstimos bancários, roupa, água, luz, gás. Dou o meu sangue funcionário pelo soldo mensal que paga a sobrevivência. 
Temo, contudo, que aquilo de que verdadeiramente preciso para ser feliz é coisa outra. Vejamos…

Preciso de sol. Preciso de mar (ou da ideia de mar disponível para, assim que possa, nos encontrarmos). Preciso de pessoas (sobretudo, das pessoas que amo). Preciso da minha casa. Preciso de tempo. Preciso de solidão boa. Preciso de paz. Preciso de ideais. Preciso da minha cidade. Preciso de palavras. Preciso de livros. Preciso de justiça. Preciso de histórias. Preciso de saber. Preciso de liberdade. Preciso de ordem. Preciso de conversar. Preciso de sentido (aliás, de sentidos). Preciso de lógica. Preciso de asseio. Preciso de verdade. Preciso de chegar (ou de acreditar que chegarei, ou de que estou a chegar). Preciso de Beleza.

Coimbra, 03 de Setembro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (foto da praia de Mira) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.fotodependente.com.]


segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Incondicionalmente

Para a VL



Amo a minha filha. Amo-a incondicionalmente.
Mas não é tudo fácil na história deste amor. Às vezes, divergimos, querelamos, amuamos. Quando, sem sombra de dúvida, a culpa é minha, trata-se quase sempre de eu ser exigente com as pessoas que amo e admiro. Tendo a vê-las à altura do que são e do que podem ser, suportando pouco que, por distracção, fiquem – aqui e ali – aquém da sua justa realização.
Talvez eu exagere. 

Peço-te desculpa, Vanovska. É aliás provável que já não mude. Mas, mesmo quando sou irritante, é por amor.
Desejo-te longa e feliz vida! Conta com o pai. Enquanto ele for vivo, há-de estar sempre a teu lado. Incondicionalmente. (E sei que isto vale também para a mãe. Temos, ambos, muito orgulho em ti.)

Já agora: “incondicionalmente” significa “sem condições”. Qualquer jurista sabe isso, pá…

Coimbra, 03 de Setembro de 2013.

Joaquim Jorge Carvalho

domingo, 1 de setembro de 2013

Apografia 30 (e última): Infinitivo psico-verbal


Outra tarde passada em Buarcos, com a MP e a VL. Viemos de fugida, porque à noite haveria Sporting-Benfica na televisão. Era preciso tempo para banho e, logo a seguir, viagem até ao centro comercial.

Pelas seis e meia da tarde, fiz ainda o percurso mínimo do Choupal. Trinta minutos, talvez menos. Dou agora por encerrado, formalmente, o meu Agosto corredor. Foi curto. A querida vida é sempre curta.

(Parêntesis: gostaria muito que a saúde da minha Mãe fosse melhor. Gostaria muito que o meu tio T., no hospital há uma semana, ficasse bom. É tão fraco o meu desejo contra a cínica realidade.)

Eu sou, mais do que um corredor, um caminhante. E de muitos caminhos se faz o meu caminhar. De muitas partidas se faz o meu começar. De muitas chegadas se faz o meu chegar. Infinitivo, infinitivo, infinitivo.

Remate razoável disto tudo: a minha vida é, no essencial, infinitiva como o mar visto da foz.



PS: Termina aqui a série de “apografias” com que decidi pontuar os meus dias de férias. Aliás, de liberdade. Terei decerto saudades deste processo físico e mental que, com a amada Coimbra em fundo, alegremente protagonizei.

Coimbra, 31 de Agosto de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem (foto do grande Carlos Lopes!) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.forumsccp.com.]

sábado, 31 de agosto de 2013

Apografia 29: Heaney forever


Passei o dia em Buarcos, com a MP e a VL. Sol, mar maravilhoso (não obstante o friozinho da água, pois), o tempo suspenso como habitualmente acontece nestes instantes voadores, no dificultoso reino da felicidade.
Aí pelas seis da tarde, corri pela marginal – dois mil e duzentos metros até à subida que leva à Serra da Boa Viagem, e dois mil e duzentos metros no regresso ao ponto de partida. Foram cinquenta minutos de exercício com (digamos assim) o mar à cabeceira.
À noite, frango de churrasco com a família (incluindo a Mãe) e oportunidade para telever a segunda parte de um grande jogo, o Chelsea - Bayern de Munique. Rico serão, portanto.

Soube, no final deste dia 30, que morreu o grande poeta Seamus Heaney, autor que leio e admiro desde 1982. Foi, como se sabe, Prémio Nobel da Literatura, em 1995. Lembro-me muitas vezes de um verso seu, que ironicamente glosa uma discussão interminável que ainda ocupa boa parte da humanidade: a existência ou não de vida após a morte. Heaney punha assim o problema (cito de cor):

“Is there life before death?”

Os grandes poetas também morrem? Talvez sim…
E, contudo, no que me caiba a mim decidir, direi que não. Que nunca.

Coimbra, 29 de Agosto de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.narrativemagazine.com.]

Apografia 28: Carrocel sazonal


Mais tarde do que habitualmente, faço o jogging choupalino em velocidade razoável. Começo às oito da noite, acabo às nove menos um quarto. Houve tempo para antes, falar com o meu amigo RC e combinar, sem certezas, um jogo de futebol para sete de Setembro.

O fim do Verão incomoda-me como uma ferida estúpida. Lembro-me do que sentia, em criança, quando terminava o tempo da minha viagem em carrinhos de choque, durante as festas da cidade. Saía do veículo como saio – percebo agora – do meu amado Agosto: contrariado, deficientemente resignado. Triste.

Coimbra, 29 de Agosto de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.adapcede.org.]

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Apografia 27: Sucesso, dinheiro, poder


Dia prévio ao regresso da MP. Corro uma hora no costumeiro percurso choupalino, entre as seis e meia e as sete e meia do meu entardecer coimbrinha. Tenho tempo, enquanto suo, para mastigar uma curiosa afirmação do cantor (e actor) Will Smith, que li à hora do café, no Correio da Manhã. Deixo-a aqui:

“O dinheiro e o sucesso não mudam as pessoas. Apenas nos revelam quem realmente as pessoas são.”

Eu acrescentaria a estas duas variantes (dinheiro, sucesso) uma terceira: o poder. Amen.

Coimbra, 28 de Agosto de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.pt.dreamstime.com.]

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Apografia 26: Despovoamento


Sete horas e meia da noite. Corro novamente a “volta grande” e a “volta pequena” do Choupal. Regresso pela Estação Velha, o Lidl, a rua dr. Manuel Almeida e Sousa. Chego às oito e meia. Ainda há calor. Verão & incêndios, diz a minha Mãe.
Do portão da casa materna, olhos voltados na direcção de Eiras, a paisagem é semelhante à que vi, numa qualquer tarde de 1973.

Vejo agora uma casa em ruínas, no cimo do monte, entre a estrada inferior e o Ingote. Lembro-me dessa casa quando ainda viva: gente entrando e saindo, crianças brincando na vegetação fronteira, uma senhora idosa saindo de um táxi, muito elegante e carregada de sacos, o carteiro com medo do cão.
O Tempo é um deus despovoador.

Coimbra, 27 de Agosto de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (uma casa qualquer para ilustrar razoavelmente o meu texto) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.wikipedia-org.]

Apografia 25: Cantiga precisa-se


Das sete e meia da noite às oito horas e vinte e quatro, fiz corrida non-stop no Choupal do costume. Durante esta viagem física e mental, ocorreu-me uma ideia para letra de fado coimbrinha. Concretizei o poema no dia seguinte, em Café da zona de Eiras. 


Suspira a bela, ao luar
Mal escondendo de quem passa
O pranto doce.
Custa-lhe não escutar
Cantigas dignas da graça
Que ela fosse.

Percebo bem a tristeza
Da frágil flor, suplicando
À janela.
É que precisa a Beleza
Que sempre se vá cantando
Que é bela!

Coimbra, 27 de Agosto de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.literatodovale.blogspot.pt.]