sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013
Adiamento escrito no interior da gazela
O Tempo-leopardo tem fome de mim
(Sou frágil ágil hábil gazela)
Escondo-me ou corro fugindo do fim
(Tão perigosa a selva, apesar de bela!)
Arco de Baúlhe, 22 de Fevereiro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.animais.culturamix.com.]
sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013
Presente (à moda de S. Valentim)

Vê na rosa dada, meu amor,
A ilusão de nada nos morrer.
E ilude, como possas, essa dor
De até a nossa rosa envelhecer.
Arco de Baúlhe, 15 de Fevereiro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A primeira imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.pobresericos.blogspot.com. A segunda imagem é do famoso Cascão, personagem inventada pelo genial Maurício de Sousa.]
quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013
Pouca terra
Desculpai os silvos à chegada e à partida –
Assim saúdo o encontro e a despedida.
Sou este comboio regional
Atravessando o Mundo via Portugal
Parando em todos os apeadeiros e estações
Para saírem-entrarem pessoas, ilusões
Lugares, sensações re-novidades
Amores que são, que foram, saudades.
Sou um trem antigo, dorido e terno
Com alma de verão, cara de inverno
Isto é, Estação Velha dos instantes
Suma ferrovia de amores viajantes.
Desculpai os silvos de passagem –
Sou eu. O comboio. A viagem.
Coimbra, 11 de Fevereiro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (Coimbra B, i.e., Estação Velha) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.arturportugal.wordpress.]
sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013
Ódio

Odeio, sem vestígio de piedade cristã, a hipocrisia e o cinismo de muitos políticos.
Odeio a desumanidade de alguns comentadores, de quase todos os banqueiros e de muitos taxistas.
Odeio a deslealdade e a mentira de colegas e conhecidos.
Odeio a ignorância e a estupidez de insectos e vermes com a mania de que são importantes.
Mas, hoje, odeio sobretudo um filho da puta que, entre o Arco e Cavez, pelas seis e meia da tarde de ontem, me ia matando, por conduzir doidamente na direcção contrária à que eu humildemente levava. Um porco, uma besta quadrada, um anormal com carro, que se deu o direito de ultrapassar numa zona de traço contínuo, a uma velocidade três vezes superior ao permitido por lei e que por pouco me riscava do mundo dos vivos. Imagino-o numa tasca qualquer vangloriando-se do tempo espantosamente curto que fez entre um lugar qualquer de origem e outro lugar qualquer de destino - e, em contraponto, vislumbro a minha Mãe, a VL, a MP a receberem, ontem, pelas sete da tarde, a notícia da minha morte.
Odeio-te, ó porco da estrada, ó besta quadrada do volante, ó anormal das ultrapassagens, ó filho da puta!
Arco de Baúlhe, 08 de Fevereiro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.globoesporte.globo.com.]
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013
Lua nossa
Ando a ler com os meus alunos do 8.ºC1, desde há semana e meia, A Lua de Joana, de Maria Teresa Maia Gonzalez. É um belo livrinho, este, que traz para a narrativa o complexo e essencialmente misterioso mundo dos adolescentes.
A aula começou com gramática e foi difícil captar-lhes, então, a concentração necessária. Guardei aquele docinho da leitura só para o fim e, uma vez mais (aleluia!), vi acontecer o milagre consabido de uma história sendo contada/ouvida. Isto: um manto de silêncio generoso e produtivo cai docemente sobre nós e por alguns capítulos há o aconchego único de estarmos viajando, juntos, por mundos novos e mágicos e queridos e necessários.
A campainha trouxe a (outra) realidade, subitamente. Mas já ninguém nos tira esse cúmplice prazer que foi irmos, juntos, à lua. Aliás: que é irmos, juntos, à lua.
Arco de Baúlhe, hora d'almoço, 07 de Fevereiro de 2013.-
Joaquim Jorge Carvalho
quinta-feira, 31 de janeiro de 2013
Lapsos de lida

1. Tolentino Mendonça, um excelente poeta português, conterrâneo da MP, foi entrevistado, há uns três dias, por Carlos Vaz Marques, na TSF. Disse, sobre a poesia (e, digo eu, a literatura em geral), que a escrita é uma espécie de lente que aumenta, em pormenores essenciais, o mundo e a vida - para vermos, vida e mundo, melhor.
2. Na noite de sábado para domingo, estive com muita febre. E sonhei doidamente, como sempre me acontece nestes casos. Desta vez, era um cortejo de cegos que me queriam tocar na cara, nos olhos, no cabelo. E, a cada toque, dava-se que eu via melhor o rio e as árvores, enquanto voava sobre o largo da Portagem, em Coimbra.
3. Dou-me mal com a deslealdade, a brutidade, a rudeza. Quando sou vítima, à traição, de uma qualquer besta, acordam-se-me as vísceras mais primárias - e apetece-me ser eu próprio bruto, mau. Desleal é que não, porque só sou capaz de agir ruidosamente, às claras. Se aqui estivesse o meu amigo Padre Manuel, de Ançã, dir-me-ia decerto que a fúria não é para levar a sério. Que a desilusão (e a dor em geral) é só uma oportunidade para crescermos interiormente. Silêncio, pois - para o coração crescer.
4. Uma aluna disse, na aula de Português, inesperadamente: "Não gosto nada que haja fim para as coisas." Os colegas riram-se, corrigiram-na: "Ai, não queres o fim das coisas más?" Ela reformulou a sua descoberta: ""Não gosto que haja fim para as coisas boas." Eu participei no (espontâneo) debate e confessei: "Ando a escrever, há já mais de quarenta anos, sobre isso!"
5. Passo por colegas que, no intervalo, fumam ao portão e provoco-as: "Fumar mata." Sorriem-me piedosamente e eu prossigo, ladeira acima. Reflicto: fumar mata, sim. Mas todos os verbos matam: trabalhar, correr, sonhar, amar, falar, saber, esperar. Matam todos. Até viver.
Arco de Baúlhe, 31 de Janeiro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com adevida vénia, em http://www.anatomias.mediasmile.net.]
sexta-feira, 25 de janeiro de 2013
Gianni Rodari ao telefone
Descobri, há uns vinte anos, um escritor italiano chamado Gianni Rodari. Andava pelas prateleiras de uma livraria em Coimbra, à cata de autores e títulos que me despertassem a curiosidade e dei de caras com um título original: Histórias ao telefone (título original: Favole al Telefono). De pé, junto da estante, li um pequeno conto do volume com o nome “O caçador desafortunado”. A história era a de um caçador cuja espingarda se recusava, de certo modo, a funcionar. Melhor: era a história de uma espingarda que, em vez de matar, divertia e, portanto, em vez de fazer vítimas, antes lhes provocava alívio e as fazia rir.
O autor explicava que as histórias tinham sido fabricadas por um caixeiro-viajante (o senhor Bianchi, da cidade de Varese), o qual, em obediência a um pedido da filha, arranjava sempre uma fábula para cada noite. Como estava muitas vezes ausente em viagem, o homem recorria frequentemente ao telefone…
Comprei o livrinho, claro. E, já em casa, deliciei-me com outras pequenas e extraordinárias narrativas: “O palácio de sorvete”; “O passeio de um distraído”; “A casa de estragar”; “A mulherzinha que contava os espirros”; “O país sem ponta”; “O des-país”; “Os homens de manteiga”; “Alice Trambolhona”; “A estrada de chocolate”; “A inventar números”; “Brif, bruf, bruf”; “A compra da cidade de Estocolmo”; “Para tocar no nariz do rei”; “A famosa chuva de Piombolino”; “O carrocel de Cesanatico”; “Na praia de Óstia”; “O rato da banda desenhada”; “História do reino de Comilónia”; “Alice cai ao mar”; “A guerra dos sinos”; “Uma violeta no Pólo Norte”; “O jovem caranguejo”; “Os cabelos do gigante”; “O nariz desertor”; “A estrada para lado nenhum”; “O espantalho”; “A brincar com a bengala”; “Velhos provérbios”; “Apolónia das compotas”; “A velha tia Ada”; “O sol e a nuvem”; “O rei condenado à morte”; “O mágico dos cometas”.
Naturalmente, cada uma destas histórias não tem mais de duas-três páginas. O próprio autor o explica, naquela espécie de introdução em que se fala do senhor Bianchi: tratando-se de narrativas transmitidas “ao telefone”, nunca poderiam ser relatos muito extensos…
Ao longo dos anos seguintes, em muitas ocasiões, dei a conhecer estas histórias aos meus alunos. A minha mulher, que também é professora de Português, fê-lo igualmente. E não me lembro de um só leitor que, no final de cada leitura, não se tenha deixado seduzir pelo modo engraçado e inteligente de contar histórias que caracteriza a literatura de Gianni Rodari.
No livro Histórias ao telefone, que recomendo aos leitores com fome de fantasia, há lugar para o humor e para a diversão – mas também para brilhantes notas poéticas que nos deixam a pensar, comovidos e encantados. Ofereço-vos, já agora, um formoso passo que encontrarão nas páginas 33-34, no final de uma história intitulada “A inventar números”:
«- Quanto pesa uma lágrima?
- Depende: a lágrima de um menino mimado pesa menos que o vento, a de um menino esfomeado pesa mais que toda a Terra.»
(Histórias ao Telefone, de Gianni Rodari, Lisboa, Editorial Teorema, 1987.)
(Histórias ao Telefone, de Gianni Rodari, Lisboa, Editorial Teorema, 1987.)
Arco de Baúlhe, 25 de Janeiro de 2013.
Joaquim JOrge Carvalho
quinta-feira, 24 de janeiro de 2013
Janela da cozinha (natureza morta)
Meu amor, não viste
(Redonda, encarnada)
Essa maçã triste
Na tarde parada?
E da nossa janela
(Bem brilhando, linda)
A neve singela
Tão branquinha ainda?
Já nos morre o dia
(Mas, hoje, amor) não
Me apetecia
A escuridão!
Ribeira de Pena, 23 de Janeiro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto de José Ferra, colhida - com a devida vénia - em http://www.tvi24.iol.pt.]
terça-feira, 22 de janeiro de 2013
Sombra
Vão rareando as crianças no interior de Portugal. A coisa é física e simbólica: num lugar mais profundo do território de nós (não exactamente o mesmo que nosso território), há um vazio seco em vez de uma fresca possibilidade.
Fui de minha casa ao Café, algures durante a tarde, e só vi gente antiga. Eu próprio, que sou hoje mais anoitecer que amanhecer, parecia um dos mais novos por ali em trânsito.
De modo que é assim - que é isto: uma sombra (física e simbólica) caindo sobre Portugal. Sobre mim. Sobre nós.
Ribeira de Pena, 20 de Janeiro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
Fui de minha casa ao Café, algures durante a tarde, e só vi gente antiga. Eu próprio, que sou hoje mais anoitecer que amanhecer, parecia um dos mais novos por ali em trânsito.
De modo que é assim - que é isto: uma sombra (física e simbólica) caindo sobre Portugal. Sobre mim. Sobre nós.
Ribeira de Pena, 20 de Janeiro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
sábado, 12 de janeiro de 2013
Quadra (quase perdida) de Julho passado
O maior perigo
É cada Verão ser
O último comigo
A ver.
Coimbra, 22 de Julho de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[Texto resgatado do verso de um ticket de estacionamento.]
É cada Verão ser
O último comigo
A ver.
Coimbra, 22 de Julho de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[Texto resgatado do verso de um ticket de estacionamento.]
sexta-feira, 11 de janeiro de 2013
Bichos, de Miguel Torga
Leitores ao espelho de si próprios
Miguel Torga é um dos grandes escritores portugueses de sempre. Cultivou vários modos literários – drama, poesia, ensaio, diarística, narrativa.
No território da narrativa, embora também tenha escrito romances, foi talvez no género conto que o seu génio mais se notou. Contos da Montanha, Novos Contos da Montanha e Bichos são volumes que têm encantado sucessivas gerações de leitores e que não cessam de surpreender pela riqueza das histórias narradas (fundadas na experiência pessoal do autor e numa extraordinária imaginação e competência literária) e pelas lições de vida compreendidas em cada conto.
Só aparentemente as histórias se reduzem ao domínio da fábula tradicional. Embora, na maior parte dos casos, encontremos animais como protagonistas, a verdade é que todos os contos estão carregados de uma humanidade próxima e facilmente reconhecível. As emoções de Nero (um cão) ou de Tenório (um galo); as peripécias de um burro ou de um pardal; a teimosia e coragem do corvo Vicente ou o ímpeto inevitável de uma cigarra cantadora – tudo é, afinal, um mundo simbólico que profundamente retrata ou evoca a vida humana, uma sociedade cheia de alegrias e tristezas, sonhos e medos, fúrias e amores.
Acontece-me com Bichos o que me acontece com grandes obras de arte – filmes, pinturas, música, grande arquitetura, literatura: de cada vez que nos encontramos (eu e a obra de arte), dá-se o milagre da novidade. E o milagre, a cada leitura (a cada encontro), renova-se.
Bichos é, de facto, um grande, grande livro da literatura portuguesa!
Arco de Baúlhe, 10 de janeiro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[Texto elaborado para a Biblioteca da minha Escola, no âmbito da promoção da leitura.]
Bichos
Andei
a ler com os meus alunos, nos últimos tempos, o conto “Ladino”, de Miguel Torga.
Retive, com prazer, os sorrisos inteligentes que sucediam nos jovens leitores
do oitavo ano a cada manifestação de esperteza e, aqui e ali, de fingimento que
o anafado pardal protagonizava, na história. Perante a fome dos semelhantes, Ladino mostra-se
aparentemente comovido, mas percebemos que, entretanto, se ocupa (com sucesso) da
sua própria gula, sem partilhar a fartura. E, de barriga bem cheia, lá vai emitindo
lamentos pela situação dos mais desfavorecidos...
Li
entretanto, num jornal de referência, uma notícia sobre as férias de Miguel Relvas no Brasil, num dos
hotéis mais caros do país irmão. A notícia trazia foto – o senhor ministro olhando
para o monitor do seu telemóvel, gordinho como um pássaro feliz. E confirmei
que Bichos é um livro maravilhoso,
muito mais sobre os homens que sobre outros animais.sexta-feira, 4 de janeiro de 2013
Transtempado (vislumbramentos)
Em vitrinas de Cafés e de lojas avulsas, ali pela rua Visconde da Luz acima, vejo e admiro, em religioso silêncio, dezenas de fotos de Coimbra antiga. Sinto sempre um profundo fascínio por esses vislumbres de tempo que não me foi dado viver em directo. É muito maior, aliás, o deslumbramento neste caso, vo-lo digo, do que aquele sentido perante imaginosas histórias futuristas (na área da chamada “ficção científica”). Identifico-me misteriosamente com lapsos de luz d’outrora, gente d’antanho respirando ares que se foram, vegetação crescendo-morrendo quando ainda tinham seiva e futuro. Mundo a preto & branco, o meu.
Se eu pudesse voar num tapete calendário, quereria sempre fazer a viagem no sentido de ontem. No sentido desse lugar anterior a mim. Desse lugar que, por acidente, perdi.
Sou, ora bem, uma pessoa essencialmente antiga!
Ribeira de Pena, 01 de Janeiro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto MPC]
Os botins de Ana
Vi na Casa de Camilo, em S. Miguel de Seide, numa vitrina conspícua, certo parte botins muito elegantes que – garantem as legendas – revestiram por algum tempo os pés de Dona Ana Plácido. São uns botins pequeninos, algo frágeis e delicados, símbolo (digo eu) da natureza reservada e sensual da amada de Camilo.
Os meus olhos voaram dali, depois, para um salão qualquer no Porto, ou para um esconso trilho no Minho famalicense, quem sabe talvez para uma caleche burguesinha de meados de 1800…
Calculo, sem grande rigor logístico, que aqueles mesmos botins tenham andado por alguns dos caminhos de perdição de Ana e seu amante genial. E, sabei agora, os pés que ali já não podem estar, por haver essa lei fascista da mortalidade, têm de novo sangue porque eu imagino.
Eis o meu credo mais valioso e poderoso: a verdade – existindo ou não – é sobretudo o que eu for capaz de imaginar!
Ribeira de Pena, 15 de Novembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (foto de David Soares) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.fotografias.360.com.]
domingo, 30 de dezembro de 2012
Uma Morte Súbita: J. K. Rowling sabe contar, iô!
A MP e a VL ofereceram-me Uma Morte Acidental (título original: The Casual Vacancy), de J. K. Rowling, Lisboa, Editorial Presença, 2012. Os jornais tinham anunciado a primeira obra “para adultos” desta autora, o que já era motivo razoável de curiosidade; mas a mim interessava-me sobretudo perceber – mais do que isso: confirmar – que o talento de bem engendrar e de bem contar histórias não se esgota num público-alvo específico (etário ou outro). Sim, eu lera alguns livros da saga Harry Potter e encantara-me já com a evidente capacidade de invenção de plots e com a brilhante destreza narrativa de Rowling. Tratava-se agora, segundo anunciavam os jornais, de uma obra de cariz realista, com personagens e contextos da actualidade. Adivinhei que vinha aí coisa válida e, para o Natal, sugeri à MP e à VL este presente.
É um volume com 497 páginas, aviso. Mas desde o primeiro capítulo que a teia mágica da intriga nos agarra. Aprendemos os nomes e os tiques de umas vinte personagens, familiarizamo-nos rapidamente com uns dez (ou mais) cenários de acção, partilhamos ou abominamos algumas idiossincrasias particulares de uma cidadezinha inglesa (que me pareceu, por vezes, uma aldeia de Júlio Dinis) e, enfim, tornamo-nos moderados habitantes de Padford.
À roda da morte súbita de um notável da cidade (odiado & amado por outros notáveis), constrói-se um novelo riquíssimo de histórias - que passam por ridículas ambições políticas (à Eça), pela fome de brilho mundano (à Garrett), por certa degradação neo-realista da sociedade moderna (à Soeiro Pereira Gomes), pela violência doméstica (à Lídia Jorge), pelo mistério de laços familiares (à Camilo), pelo amor (à Yourcenar) e pela tocante fragilidade de que somos todos feitos (à Vergílio Ferreira).
O estilo de Rowling é simples e competente (à Júlio Dinis, à David Lodge), preterindo eventuais grandes arroubos de linguagem em favor da clareza da história, das histórias.
Para mim, que ando à procura de escrever o (meu) romance sonhado, a obra de Rowling recordou-me algumas noções fundamentais sobre este território genológico – nomeadamente, a importância de tornar familiares os espaços literários da intriga (“familiares” não significa conhecidos, note-se; significa “reconhecíveis” no universo da obra), a importância de distribuir generosamente a atenção do narrador por várias personagens, complexificando-as (de modo a aproximar cada ser ficcional da condição complexa e rica de seres humanos), a importância do saudável convívio e concomitância entre acção principal e acção secundária (ou “acção” e “intriga”, como diria Carlos Reis; ou “intriga nuclear” e “intriga periférica”, como escrevi eu próprio, na minha tese sobre Júlio Dinis).
De menos positivo, para além da obediência ao novo acordo ortográfico, talvez o facto de a narração compreender demasiados casos dramáticos (e até trágicos), o que – num contexto geral representativo de certa rotina existencial – é susceptível de banalizar (e, ergo, de comprometer, desvalorizando) o acontecimento extraordinário.
Li Uma Morte Súbita entre as duas horas do dia 25 e as sete horas de hoje, dia 29. Quando acabei a leitura, já a luz decembrina da minha rua iluminava o quarto. E a própria luz romanesca era, como agora percebo, tão fresca como aquela manhã.
PS: A tradução desta obra foi certamente difícil. Gostei do modo como se representou-enunciou, em Português, a variedade de registos linguísticos, os regionalismos e o calão. Também a escolha de Uma Morte Súbita para título é um verdadeiro achado. Contudo, talvez pressionada por alguma urgência editorial, a equipa de tradutores (Alberto Gomes, Manuel Alberto Vieira, Marta Fernandes e Helena Sobral) fez, aqui e ali, várias opções manifestamente desaconselháveis (sublinhei cerca de quinze casos de tradução menos feliz). Mas são, repito, 497 páginas – e nisto de avaliação de traduções é tudo tão subjectivo…
Coimbra, 29 de Dezembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
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