Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Exegese do coração


Gosto de imaginar Deus como um Grande Leitor. Leitor, diga-se, do imenso, absoluto, infinito, cósmico Livro dos Tempos. Imagino-O a folhear o Seu livro à hora do morno entardecer do Paraíso. Nós somos personagens - umas vezes principais, outras secundárias. Deus ri-se connosco, zanga-se, comove-se, surpreende-se, castiga-nos, perdoa-nos, perde-se na leitura e volta, uma vez por outra, atrás (divinas analepses,estas).
Quando está cansado, interrompe a leitura e dorme placidamente na sua nuvem preferida (que tem a forma do colo de minha Mãe, há meio século, no quarto humilde da nossa casa). Voltará à leitura apenas quando Lhe apetecer. 
Só no fim dos tempos Ele preencherá a ficha de leitura sobre esta narrativa. E só então saberemos, ó personagens distraídas como eu, o que o Grande Leitor achou do que fomos. Isto é: do que, nesta ilusão chamada Presente, somos.
A eternidade é talvez isso: a ideia com que o maior leitor do universo ficou, ficará de nós.

Ribeira de Pena, 28 de Janeiro de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho

[Este texto foi originalmente publicado (com ligeiríssimas diferenças) no jornal da Escola Básica de Arco de Baúlhe,o Arco-Íris, em Julho de 2007.A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.escritoradeartes.com]

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

País pessoal em 4 andamentos


1

Portugal é o meu lugar certo:

Chega-me que haja mar

O sol por perto

As horas passando devagar.

 

2

Desamo os portugueses sem amor

Pelo essencial país

Que só algum mapa interior

Percebe e diz.

 

3

Também acordo às vezes acordo indignado

E verbero ferozmente a corrupção

Sinto-me estrangeiro, deslocado

Sem chão –

 

Mas depois o sol lá me aparece

E lembro-me de Mira, a praia Mãe –

De modo que a revolta me falece

E fico bem.

 

4

Ó Portugal ingénuo, distraído

Lírico, trapalhão, trabalhador

Burguês, valdevinos, destemido -

Ó meu amor!

 

Arco de Baúlhe, 27 de Janeiro de 2014.

Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.panoramio.com.]

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Sobre ver



Há talvez dedos nesse olhar perverso
E todo o real visto é pele ardente;
Toca-se vendo e também o inverso
Na dança involuntária de quem sente.

Cabeceiras de Basto, 24 de Janeiro de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem é do maravilhoso filme A Amante do tenente francês, realizado por Karel Reisz (segundo um argumento de Harold Pinter), com interpretação de  Jeremy Irons e da eterna Meryl Streep.]

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

O riso indecente




Houve, na Idade Média, quem relacionasse o riso  com o Diabo. Excessos, ignorância, fundamentalismo enviesado, nós sabemos.
Mas talvez haja, também, a esta luz moderna e lúcida dos nossos tempos, motivos para novamente identificarmos com o velho Satã d'antanho certos esgares zigomáticos de algumas aves sem cerviz. Explico: vi hoje um excremento engravatado a rir-se despudoradamente, contentinho da silva, por ser o défice de 2013, afinal, inferior ao que a troika exigira a Portugal. Isto é, descontado o facto de muitos (como eu) terem sido espoliados dos seus salários, a coisa está a correr bem para os cínicos executivos desta merda a que chamamos Presente.
Eu, que escrupulosamente pago ao Banco, ao Senhorio, à EDP, à TMN, à PT, às Autarquias, às Finanças, aos Senhores das estradas, sou vítima de roubo violento e conspícuo - e há uns vermes sem gramática nem vergonha que se riem...
Estou oficialmente farto de vigaristas e bandidos!


Arco de Baúlhe, 24 de fevereiro de 2014.

Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.athiopia.blogspot.com.]

domingo, 19 de janeiro de 2014

O mar


Dou-vos, irmãos, este poema
Chamado
O mar.
Não é, notai, exactamente o mar
Mas vem do mar
Exacto, físico, azul ou verde,
Salgado, muito vivo, fresco,
Grande e próximo.

Preciso que acreditem nisto:
o meu poema vem do mar
E é também
(Visto com olhos de ver)
Uma espécie de mar.

Não é, como sabeis, de ninguém 
O mar
De onde trouxe este poema.
Mas o poema é vosso
De cada um
Tanto como de mim 
Que vo-lo ofereço, irmãos.

Viajai nele
Até ao vosso próprio mar
E pode ser que nos encontremos
Algures
Nos caminhos plurais do sal.





Vila Real, 18 de Janeiro de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (da minha praia de Mira) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.praia-de-mira.com.]

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Ferrovi(d)a


 
Silvam comboios sobre o meu quarto
E espantosa é a notícia, irmãos, porque
Não há aqui caminho-de-ferro
Onde pasto o Outono.
Mas, sim, comboios
Vizinhos do meu sono
Passam pela noite impessoal:
Por instantes, a minha alma
É também uma carruagem
In-quieta in-quieta  in-quieta
Entre este pobre presente
E o tempo todo.
 
Ribeira de Pena, 14 de Janeiro de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A minha imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.ruadebaixo.com.]

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Breve Idade (Ainda sobre o senhor Eusébio de Portugal)


Leva muito tempo tirar a uma árvore
Um fósforo.
Depois, havendo circunstância,
Ele acende-se
E por instantes brilha
Encanta-nos
Aquece-nos.

A saudade é um fogo outro
Contra as cinzas.

Coimbra, 06 de Janeiro de 2014.

Joaquim Jorge Carvalho

domingo, 5 de janeiro de 2014

Eusébio da Silva Carvalho (ou Ferreira)


Ao contrário de muitos conhecidos, colegas e amigos meus, não sou do Benfica. Mas sou do Eusébio. Reverente, admirador, grato, sou do Eusébio, como sou do Joaquim Agostinho, da Amália, da Sophia, do Salgueiro Maia - e de outros seres que nos ajudam a identificar como coisa colectiva, como Povo.
Bem sei que o Eusébio estava doente, que a idade não perdoa, que é a vida.
Por mim, foi um orgulho ter sido razoavelmente contemporâneo deste artista dos relvados que, ainda por cima, foi um homem bom. 
E ouso dizer que fica mais claro, em ocasiões como esta, o facto de a mortalidade ser, Deus nos perdoe, um erro.

Coimbra, 05 de Janeiro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho 

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Versos contra os ratos


Sou um queijo já velho. O Tempo é um rato.
Aliás: o Tempo são muitos ratos.
O Tempo é uma praga, um veneno em nós.

Os meus versos são uma ratoeira. Escrevo
Para me vingar. Para adiar a devoração.
Para fazer de conta que o veneno sou eu.

Coimbra, 30 de Dezembro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[Na imagem, estou eu e a VL - e foi ela que, sei lá porquê, a pôs no Facebook.]

In-Invisibilidade


Os restos da refeição, claro,
Como sempre, sobre a mesa,
No devir da farta festança
Mas também, digo, os restos
Do tempo, a degradação inescondível
Dos corpos e do sangue morredoiro,
As ausências que vão crescendo mais
Do que as presenças, pessoas
Que, em vez de lembrarem nomes d’outrora,
São nomes já d’outrora que lembramos
Jovialmente, no nevoeiro falacioso do vinho.

Alguém, sei, dirá (quem dera que não dissesse) –
É a vida, e encolheremos os ombros,
Muito carregados de resignação e idade.
Era tudo ainda agora, tão limpo e lindo
(Pergunta Pessanha: “Quem poluiu, quem
Rasgou os meus lençóis de linho?”). Era tudo,
Escrevo eu, tão claro de promessas e luz,
Senhor!

A minha mãe disse (quem dera
Que não dissesse esse refrão triste, Mãezinha,
Tão doloroso, sabe, tão inditoso) – É a vida.
Encolhemos os ombros, cansados, antigos,
Que se há-se fazer, não é verdade?
E de repente reparo (Senhor!) que à mesa
Somos já tão poucos.

Coimbra, 25 de Dezembro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho

 [A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.narcel.com.br.] 

domingo, 22 de dezembro de 2013

Natal com caligrafia



Eu sou do tempo das cartas e dos postais escritos & lidos em papel. Era o mesmo tempo em que os CTT eram felizmente uma empresa pública, muitos livres, ainda, de gulas privatizantes. Era o tempo em que os votos de feliz natal e de feliz ano novo vinham, quase sempre, com a caligrafia da cada coração particular.

O meu tempo, em matéria de humanidade, era melhor do que este tempo em que hoje sobrevivemos.

Talvez esta missiva seja, por isso, mais uma rendição triste: também eu, reparai, me socorro deste cómodo cadeirão digital e daqui vos envio os meus votos.

Ei-los: boas festas, feliz ano novo!


No fundo, serei igual aos meus contemporâneos. Seja. A única diferença, queria eu, era que se percebesse no meu texto a caligrafia sincera do meu coração.




Coimbra, 22 de Dezembro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.truca.pt.]

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

In-migrações (Estatuto de carreira)



Graças às raízes poder não cair;
Por causa das raízes não poder fugir.

Ribeira de Pena, 09 de Dezembro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.casaconhecimento.com.br.]

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Mandela, Salgueiro Maia do mundo


Morreu Nelson Mandela. Passei a minha vida a olhar para exemplos de homens maiúsculos (HOMENS) como este. Ele foi capaz de sacrificar o conforto burguesinho e medíocre por uma Causa maior do que o seu tempo, a sua circunstância. 
A minha gratidão por este cidadão da liberdade, da paz e de um certo humanismo puro e (dolorosamente) belo vai mais longe do que a simples celebração do político. Vai até ao Homem Maiúsculo que conseguiu ser. Serve-me para pôr em perspectiva estes fardos de nada que hoje enxameiam a contemporaneidade: políticos vácuos e bácoros com mais silicone, interesses ou banhas que gramática e bom gosto. 
Ao espelho de Mandela, a humanidade deve orgulhar-se, em primeiro lugar. Depois, pensando nesse Grande Resto sem ideal nem estética que pulula à nossa volta (governantes domésticos, governantes europeus, governantes mundiais),  a humanidade deve também envergonhar-se.

Ribeira de Pena, 06 de Dezembro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[Nota: Soube que o meu amigo (e altíssimo Escritor) Daniel Abrunheiro associou igualmente, no Facebook, o nome de Mandela ao do herói Salgueiro Maia. Ainda bem! "Les beaux esprits se rencontrent", modéstias e vaidades à parte.]

Nenhum drama senão aquele drama do fim


Nenhum drama há no tempo a passar
Senão o saber que, tendo passado, um dia
Se acabou, sem remédio, de escoar
O tempo que havia.

Porto, 05 de Dezembro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.segundaescolha.blogspot.com.]

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Céu dentro do sono


Não é a primeira vez que me acontece sonhar com gente que já partiu e me faz, todos os dias, falta. Entre o dia 29 e o dia 30 de Novembro, "estive" - aliás, estive (para quê as aspas?) - com o meu amigo Botelho, com o meu sogro (Mestre João) e com o o meu Pai. 
Nem sempre me recordo do que sonhei e, também neste caso, não me lembro de toda a narrativa (?) em que terão entroncado as diversas cenas por onde andei, durante um sono decerto agitado. Mas algo ficou de vívido e reportável. Digo-vo-lo.
O Francisco Botelho estava comigo numa espanada sobranceira a algum episódio divertido, porque ambos nos ríamos do que divisávamos nesse patamar inferior (fisicamente inferior) ao nosso olhar. Talvez estivéssemos ambos num Café do céu.

O meu sogro ia a meu lado, em viagem de carro, perorando sabiamente sobre a humanidade e a beleza. A viagem não tinha um rumo definido.

O meu Pai, esse, veio esperar-me à porta da Escola onde trabalho e disse-me que estava orgulhoso de mim. Em vida, igualmente mo fez saber, sublinho; mas desta vez, no momento em que mo dizia, abraçava-me, gesto que nele não era frequente. Sabei que aquele abraço me soube muito bem, apesar de, pouco depois, eu ter acordado nervoso, sentindo uma espécie de pedra sobre o peito. 
Avisadamente, a família preocupou-se com esta minha sensação de peso e aperto, recomendando-me uma ida urgente ao médico. Mas eu prefiro regressar ao querido sonho e pensar que aquilo era o tronco antigo e familiar do meu Pai encostado ao meu peito. Isto é, o meu Pai abraçando-se à minha saudade.

Ribeira de Pena, 02 de Novembro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.blogdocatarino.com.]