Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

domingo, 12 de março de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (78)



O deserto visto da Escola

Os maiores inimigos da Escola (em particular, da Escola pública) são alguns corvos salazarentos, que por sua natureza odeiam a democratização do conhecimento, bem como alguns (não poucos) pardais porreiristas, que por preguiça ou ideologia barata se dão mal com a tutelar exigência e odeiam a ideia do destaque individual através do esforço e do sacrifício.
Estão errados os que explicam os problemas da Escola unicamente à luz da sua democratização, no pressuposto de que o fenómeno massificador é incompatível com a busca da excelência. Falham igualmente os que vêem no amolecimento da exigência e do rigor escolares a solução para o desinteresse e o insucesso dos alunos.
Ponto de ordem: não entendo que, sobre os deveres de ensinar e de aprender, haja sequer espaço para debate. Os currículos existentes (fruto, supostamente, de um estudo rigoroso, de uma análise cabal e, enfim, de uma responsável fundamentação cultural, pedagógica, legal) são para se cumprir, ponto final. Tão-pouco me parece pertinente equacionar um regresso ao passado, que reduzisse a Escola à cartilha fascista, assente na apreensão/acumulação/reprodução, pelos alunos, de conhecimentos, sem neles se potenciar o espírito crítico, o valor da descoberta, a criatividade e a visão compreensiva e globalizante dos saberes.
A discussão que vale mesmo a pena fazer-se, hoje, é sobre os princípios e os valores a defender-ensinar-praticar-viver no universo escolar. A Escola deve estar aberta ao Presente, à comunidade, à economia, à modernidade? Sim, mas não pode, em meu entender, tornar-se numa Maria-vai-com-as-outras. A sua própria sobrevivência, como espaço decente (probo, virtuoso, democrático, justo, solidário), depende do grau de resistência que nela exista face à sujidade mundanal. Não se trata, em boa verdade, de fechar a Escola ao exterior; trata-se de a defender das agressões externas a que está sujeita - degradação dos relacionamentos interpessoais, violência selvagem, conspurcação da Língua (estropiação da gramática, empobrecimento do vocabulário, desprezo da elegância falante).
Problema óbvio: como obrigar os alunos, habituados à vida “lá de fora”, a frequentar uma Escola cujas regras fundamentais são tão singulares, tão distintas do lodo cínico que é o resto do mundo?
Com triste frequência, muitos professores - ora revoltados, ora resignados - queixam-se de a Escola nada significar, hoje, para os jovens. E de, por isso, o trabalho docente se assemelhar a “pregar no deserto”. Eu creio, ainda assim, que não há outro caminho senão continuar a pregação. Na obra-prima de Saint-Exupéry, O Principezinho, fica claro que o encanto de cada deserto é justamente a possibilidade de, procurando bem, encontrarmos um poço e nele saciarmos a nossa sede.
Na Escola e na vida em geral, é preciso nunca desistirmos da água.

Vila Real, 07 de Março de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 10-03-2017.]

2 comentários:

Paulo Pinto disse...

Se o teu texto fosse um abaixo-assinado, eu gostaria de ser o primeiro subscritor! É como quando ouvimos ou lemos alguma coisa que nos faz pensar «afinal talvez não esteja doido, há outros que se sentem como eu...»!

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Caro Paulo, orgulho-me da nossa cumplicidade! Abraço! JJC