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Número de Ondas

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (57)

Balada do Neves

João César das Neves, o arauto mais provinciano do neoliberalismo em Portugal, voltou a defender, com misteriosa fúria, o ataque aos vencimentos e às carreiras dos funcionários públicos. Em entrevista a uma televisão, lamentou o facto de a vontade do anterior governo, cúmplice dos seus próprios desejos, ter esbarrado em alguns pormenores (digo eu) irritantes – como aquele da Constituição da República e o do Tribunal Constitucional.
A ideia de que a dívida soberana e o défice decorrem dos privilégios e mordomias da função pública é, como todos sabem, um magno embuste. Valerá a pena lembrar, aliás, que o défice português, apesar da gradual reposição dos rendimentos, decresceu no primeiro semestre de 2016. E também, já agora, que as carreiras continuam congeladas desde 2010.
César das Neves prefere esquecer-se do custo dos estádios do Euro 2004, do abismo do BPN, do terramoto de BES e GES, da ameaça da CGD – e raivosamente clama, uma e outra vez, em debates, entrevistas, artigos de opinião, livrecos, contra os gastos na função pública, os gastos na função pública, os gastos na função pública. Escondida com o rabo de fora, está a agenda do que (ainda) falta cumprir, segundo os ultras do liberalismo económico: a degradação voluntária da qualidade dos serviços oferecidos pelo Estado aos cidadãos, na educação, na justiça, na saúde, na cultura, na segurança, no apoio social. Das cinzas do serviço público, não nos custa adivinhar, surgirá (?) a oferta privada, satisfazendo as necessidades do povo ao preço que as empresas decidirem (aí se perseguindo, acima de tudo, o sacrossanto lucro das grandes multinacionais).
Um amigo lisboeta, licenciado em Economia, aos primeiros alvores da minha indignação, diz-me que estou a gastar demasiada cera com tão pouco defunto; que este anafado Dâmaso Salcede do liberalismo português apenas quer “dar nas vistas”, “aparecer”. Eu temo que César das Neves represente algo pior: uma linha de pensamento que, à força da assanhada repetição e da argumentação enviesada, vai fazendo o seu cínico caminho junto dos média.
Já agora: a referência que este senhor faz ao seu catolicismo militante reduz o discurso à categoria da incongruência mais rasteira e patética. Se, como ele diz, a Igreja Católica não pactua com o neoliberalismo, já era hora de o excomungarem. E em verdade vos digo que, caso o Papa Francisco me telefone um dia destes, eu hei-de sugerir-lhe esta medida higiénica.

Coimbra, 30 de Setembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho

[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 06-10-2016-]

2 comentários:

Paulo Pinto disse...

Neste caso, tratando-se de um católico assumido, cabe invocar, com um pequeno acrescento, o conselho de Cristo aos fariseus: «Dai a César o que é de César: o desprezo».

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Nem mais, grande Paulo!
(Não me esqueço de que tiveste a oportunidade de, ao vivo & a cores, ouvir este pavão em Cabeceiras. Eu não estive presente, graças a Deus.)

Abraço!

JJC