Balada do Neves
João César das Neves, o arauto mais provinciano do
neoliberalismo em Portugal, voltou a defender, com misteriosa fúria, o ataque
aos vencimentos e às carreiras dos funcionários públicos. Em entrevista a uma
televisão, lamentou o facto de a vontade do anterior governo, cúmplice dos seus
próprios desejos, ter esbarrado em alguns pormenores (digo eu) irritantes –
como aquele da Constituição da República e o do Tribunal Constitucional.
A ideia de que a dívida soberana e o défice decorrem dos
privilégios e mordomias da função pública é, como todos sabem, um magno
embuste. Valerá a pena lembrar, aliás, que o défice português, apesar da
gradual reposição dos rendimentos, decresceu no primeiro semestre de 2016. E
também, já agora, que as carreiras continuam congeladas desde 2010.
César das Neves prefere esquecer-se do custo dos estádios do
Euro 2004, do abismo do BPN, do terramoto de BES e GES, da ameaça da CGD – e
raivosamente clama, uma e outra vez, em debates, entrevistas, artigos de
opinião, livrecos, contra os gastos na função pública, os gastos na função
pública, os gastos na função pública. Escondida com o rabo de fora, está a
agenda do que (ainda) falta cumprir, segundo os ultras do liberalismo económico:
a degradação voluntária da qualidade dos serviços oferecidos pelo Estado aos
cidadãos, na educação, na justiça, na saúde, na cultura, na segurança, no apoio
social. Das cinzas do serviço público, não nos custa adivinhar, surgirá (?) a
oferta privada, satisfazendo as necessidades do povo ao preço que as empresas
decidirem (aí se perseguindo, acima de tudo, o sacrossanto lucro das grandes
multinacionais).
Um amigo lisboeta, licenciado em Economia, aos primeiros
alvores da minha indignação, diz-me que estou a gastar demasiada cera com tão
pouco defunto; que este anafado Dâmaso Salcede do liberalismo português apenas
quer “dar nas vistas”, “aparecer”. Eu temo que César das Neves represente algo
pior: uma linha de pensamento que, à força da assanhada repetição e da
argumentação enviesada, vai fazendo o seu cínico caminho junto dos média.
Já agora: a referência que este senhor faz ao seu catolicismo
militante reduz o discurso à categoria da incongruência mais rasteira e
patética. Se, como ele diz, a Igreja Católica não pactua com o neoliberalismo,
já era hora de o excomungarem. E em verdade vos digo que, caso o Papa Francisco
me telefone um dia destes, eu hei-de sugerir-lhe esta medida higiénica.
Coimbra, 30 de
Setembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 06-10-2016-]
2 comentários:
Neste caso, tratando-se de um católico assumido, cabe invocar, com um pequeno acrescento, o conselho de Cristo aos fariseus: «Dai a César o que é de César: o desprezo».
Nem mais, grande Paulo!
(Não me esqueço de que tiveste a oportunidade de, ao vivo & a cores, ouvir este pavão em Cabeceiras. Eu não estive presente, graças a Deus.)
Abraço!
JJC
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