Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

A palavra vale


O vale de Machico tem que se lhe diga.
É lá que moro
(No vale, isto é, na palavra vale)
Entre as montanhas e o mar.

Alguma coisa há-de ligar o vale
A valor
(Vale geográfico a vale vocabular).
Alguma coisa há-de ligar valer
A dizer.
Alguma coisa há-de ligar a realidade
Ao amor.

Moro pois entre este fado cartográfico-civil
E o devir
(O devir é o que falta dizer).
Machico, percebei, é só o início, e já é muito -
O resto sou eu ao volante da minha condição.

As montanhas são as paredes da minha casa
Original
(O berço, a concha aconchegante)
E o mar milenar é um convite
Ao futuro.

Vai-se de vale a valor ao ritmo das ondas
Dentro da língua portuguesa.
Vai-se e volta-se e volta-se e volta-se.

Às vezes navega-se para vermos Machico
Ao longe.

Ribeira de Pena, 30 de Novembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.olhares.aeiou.pt. Este poema faz parte do meu livro de poemas "A Palavra Vale" com que venci o Prémio Literário Francisco Álvares de Nóbrega (Machico - Madeira). A Junta de Freguesia de Machico editou um volume intitulado V Concurso Literário de Poesia Francisco Álvares de Nóbrega (Outubro, 2011) que, além do meu trabalho, inclui os trabalhos classificados no 2.º e 3.º lugares.]

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Broncos ocos roncos


Conheci aquela besta na caixa do hipermercado, gaja eficiente com a leitura óptica e com os preços, mas também desabrida e loquaz, com aquela anafada ignorância das faladoras cheias de clichês e veneno. Declamava "política", a aventesma, estimulada pelo sorriso abúlico de um elefante de saias que (também) odiava "os das esquerdas". A da caixa roncava: que era bem feito tirar os subsídios aos funcionários públicos, pois eles não faziam nenhum e deram cabo do país; que este governo leva as coisas a direito e assim é que tem de ser; que os professores e os médicos e os enfermeiros e os das câmaras vão mas é trabalhar; que quem faz greve não gosta de vergar a mola. Toda esta merda enquanto me edificava, peça a peça, o preço da fruta e do café que eu ali fora, em má hora, adquirir. Por um segundo, a porca olhou-me nos olhos à procura de alguma concordância que eu lhe desse: encontrou o glaciar do meu desprezo e, talvez, do meu ódio.
Com a idade tornei-me menos paciente, menos tolerante, menos cristão. Tendo agora a considerar porcos os ignorantes e a cuspir, por enquanto metaforicamente, sobre os seus roncos cheios de vacuidade ou porcaria.

Coimbra, 27 de Novembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.porcobovino.blogspot.com.]

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Nudez


Admiro, da mesa mais esconsa da pastelaria, a competência milenar do vento em seu ofício de despir as árvores. E, depois, essa nudez de troncos e ramos, vista daqui, é também um fruto.

Cabeceiras de Basto, 23 de Novembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.holehorror.blogspot.com.]

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Quadra de um jovem de vinte anos para Demi Moore


De alguns maduros frutos o sabor
É mel tão doce e forte, tão preciso
Que, à hora de o provar, o provador
Confunde paladar com paraíso.

Ribeira de Pena, 22 de Novembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (de Demi Moore) foi colhida - com a devida vénia - na wikipedia.]

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Casa de Partida


Um homem sonha que foi a todo o lado e que voltou, feliz, à casa de partida, carregado de tesouros.
Acordando, contudo, descobre que está na dita casa de partida sem haver partido para lado algum, isto é, cheio apenas de sonhos por cumprir, isto é, de nada.
O pior é que acorda cansado, como se os esforços feitos-sentidos durante o sonho implicassem, afinal, nos músculos da sua condição presente.
À míngua de forças, deixa cair os sonhos e substitui, por exemplo, a ideia de morar junto à praia por vinte euros de gasóleo e um café.
Gostava, em menino, de apanhar conchas à beira do mar. Agora, à noitinha, escuta o vento nas árvores, os uivos de cães ou lobos durante a escuridão repetida, os gemidos d’horas da igreja de Santa Marinha ou do Salvador - e faz de conta que, apesar de tudo, está tudo certo. Mas não.

Vila Real, 21 de Novembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem - do maravilhoso filme “Adeus, Pai”, de Luís Filipe Rocha (1996) - foi colhida, com a devida vénia, em http://www.setimapartitura.blogspot.com.]

sábado, 19 de novembro de 2011

Encontro, seguido de Amor, seguido de Tempo, seguido de Morte (sendo tudo Tempo)


Olá, viúva de mim
Esperei a vida por ti.
Por demorares tanto assim
É que eu morri.

Ribeira de Pena, 18 de Novembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (cartaz do filme The Dead, de John Huston, com base no conto homónimo de James Joyce) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.imd.com.]

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

O segundo roubo do plasma


1. Há uns três anos, mais ou menos, eu e o resto do agregado comemorámos, com orgulho, o pagamento da vigésima prestação de um enormíssimo plasma. Só deste modo mais suave seria possível, em boa verdade, a três remediados como nós, assumir a propriedade de tal tesourinho burguês. A nossa sala-de-estar era, como não me cansei de dizer durante tanto tempo, o espaço mais rico da Casa: bons sofás, móveis modernos, home cinema – e aquele grande plasma grande! Não despiciendo para a satisfação familiar, foi o pormenor de aquela despesa, tão improvavelmente ao nosso alcance, ter sido muito bem pensada, no contexto da nossa economia apertadinha, e de religiosamente havermos sido capazes de cumprir esta obrigação extra. Certa noite, olhei para o plasma e comentei como um nababo moderno: “Isto, agora, já é mesmo nosso!”
2. Mas o diabo não dorme. Nem um mês depois daquele dia glorioso e honesto, a minha Casa em Coimbra foi assaltada e muito do que havia naquela sala passou para as mãos de uns bandidos que eu odeio para sempre. Talvez quem me roubasse tivesse necessidade imperiosa de fazer dinheiro (toxicodependência, desemprego, etc.). Mas que culpa tenho eu, medíocre operário da educação, dessa merda? (Parêntesis: a polícia não pôde fazer nada.)
3. Na minha sala, há agora uma televisão contemporânea dos anos em que o querido Sporting ganhava. Não posso, por enquanto, ter outra – e, no dia em que possa (se houver esse dia), hei-de temer que me assaltem de novo.
4. No presente mês, vou receber o meu subsídio de natal com um desconto (decidido à minha revelia) de cinquenta por cento e, nos próximos dois anos, pelo menos nesses, vão também roubar-me a totalidade dos subsídios de férias e de natal. Um governo anterior desviara já, antes, uma fatia significativa do meu ordenado. Talvez quem me roube tenha necessidade imperiosa de fazer dinheiro (para pagar o BPN, o BPP, etc.). Mas que culpa tenho eu, medíocre operário da educação, dessa merda? (Parêntesis: a polícia não pode fazer nada.)

Post Scriptum: Os senhorios não deixam de cobrar as rendas. Os bancos não deixam de cobrar as prestações. Certas vozes asininas teimam em dizer que os portugueses com vencimentos mensais entre, por exemplo, mil e dois mil Euros não se devem queixar; que se têm dívidas é por sua própria culpa; que poupassem, que se precavessem. Nunca ouviram tais cavalgaduras a máxima de que os nossos passos têm o tamanho das pernas? Pernas cortadas, como manter a mesma amplitude dos passos? O meu plasma foi tranquilamente pago porque fiz as minhas contas responsavelmente, tomando como certo que não me roubavam os recursos com que a cada mês conto. Se Sócrates ou Passos Coelho me tivessem assaltado mais cedo, talvez não conseguisse pagar aquele saudoso plasma. É muito triste roubarem-nos o fruto do nosso trabalho, irmãos, sem que a polícia possa fazer nada.

Ribeira de Pena, 18 de Novembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (os Metralhas, de Disney) foi colhida, com a devida vénia, na wikipedia.]

domingo, 13 de novembro de 2011

Poema sobre Centros Comerciais & Modestas Vidas (soneto que era para ser todo em métrica regular e sempre com rima, mas não)


Basta-me este calor comercial
As luzes emprestadas a luzir
A gente perceber-se menos mal
A eternidade do shopping antes de falir.

Basta-me a francesinha e a cerveja
A tua mão por vezes, o Presente
As contas quase em dia e a Mãe viva
Alguma saúde para prosseguir.

Basta-me que a vida continue
Com batatas fritas e beleza
Basta-me o carro com gasóleo

Basta-me tu estares à minha mesa
Basta-me que a escrita continue
(Que não morra a Língua Portuguesa).


Vila Real, 13 de Novembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem revisita, com a devida vénia, o filme "Manhattan", de Woody Allen.]

Obituário de barco


Ex-promessa de mim, devir
De sonhos entretanto em lume brando
Chego ao fim, Senhor, sem bem partir
Um barco triste, traste naufragando.

Vila Real, 13 de Novembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

S. Martinho cá de dentro


1. Mil vezes tentei actualizar, junto dos meus alunos, a lenda de S. Martinho. Com maior ou menor eficácia (e maior ou menor brilho), já os pus a reflectir sobre a pobreza e a fome no mundo, o racismo, as guerras, a violência, a injustiça.
2. Lembrei-me, hoje, uma vez mais, de meu sogro, o Mestre João. Em tantas ocasiões dei por mim a duvidar que tanta bondade pudesse - mesmo - habitar o coração de um humilde contemporâneo da minha biografia. Família, amigos, até desconhecidos eram, para si, urgências, quero dizer, gente que dele facilmente levaria o pão, a roupa, o dinheiro que tivesse.
3. Agora que, de novo, recordo este santo, realço sobretudo a sua generosidade em matéria de Tempo e Atenção. Tempo e Atenção à disposição dos outros, reparai: não há maior Ouro para oferecer, na economia dos corações, que isso.
4. Nos últimos dois anos de vida do Mestre João, andei a escrever, em seu nome, para ministérios, secretarias, tribunais, procuradores, reclamando do facto provadíssimo de lhe subtraírem à pobre reforma cerca de cem Euros. Enviei, a cada missiva, declarações timbradas, fundamentações legais, contabilidades com carimbo oficial. Toda a gente respondia que sim senhor, teria razão, mas que o requerimento era para fazer em outro qualquer serviço; ou que o prazo para reclamar expirara; ou que só com advogado (e ao fim de muito tempo) seria possível julgar este caso; etc.
5. Fiz questão de, na maioria dos requerimentos, lembrar a idade provecta do requerente e, em concomitância, o tempo correr contra a própria possibilidade de reparação de justiça. A ideia que, em seu nome (e, sem muito empenho, ele próprio poderia verbalizar) era: morrendo, como compensariam a injustiça feita?
6. O Mestre João, com mais ou menos dinheiro, foi dando tudo quanto tinha a todos quantos com ele privavam ou a ele recorriam. E, entretanto, morreu. A história, em sua crueza, é esta.
7. E agora, que andamos - por exemplo - a pagar com o dinheiro que nos roubaram (salários, subsídios) loucuras como o BPN, as parcerias público-privadas, etc., recordo-me de novo deste homem tão maior que a pátria degradada onde viveu.
8. O meu sogro é a ideia verdadeira de S. Martinho. Aquele (este) Portugal hediondo (feito de notáveis como Sócrates, Passos Coelho, Dias Loureiros & Varas) é o contrário de S. Martinho.
Tenho dito.

Ribeira de Pena, 10 de Novembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Departamento Pessoal de Estar Contra a Barbárie




Contra a moderna brutidade ao quilo
E os coices contra o Português
Leiamos o Garrett ou o Camilo
Ou o magno Eça (ou todos três).

Ribeira de Pena, noit’enfim de 08 de Novembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Devolução vital


Levai-me ao Portugal de eu pequenino
Deixai-me visitar a outra vida
Dai-me o meu futuro de menino
Amai-me pela vida não havida.

Abdicai, senhores, de me julgar
E trocai vossas leis por corações
(Que o coração é o último lugar
Onde se aceitam devoluções).

Ribeira de Pena, 07 de Novembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

domingo, 6 de novembro de 2011

O Inverno explicado aos filhos


Pai, o que é o Futuro?
[Perguntou ela, serena, a crescer
Brincando às andorinhas em cima do muro.)
Eu disse: Filha, é o que falta fazer.

Pai, o que é o Presente?
(Perguntou ela, serena, crescida
Na formosa lida de ser gente.)
Eu disse: Filha, é a vida.

Mas cedo se esgotou a serenidade
E veio o bruto Inverno receado
Cobrindo-nos das neves da Saudade.

Lamento-te esse olhar tão assustado
E o não poder salvar-te da Verdade:
O Presente e o Futuro são... Passado!

Vila Real, 06 de Novembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A pintura (de Charles Spencelayh) foi colhida, com a devida vénia, em http:/www.rceliamendonça.wordpress.com.]

sábado, 5 de novembro de 2011

Fazer que faço


Cansa-me o não fazer
(Fazer apenas que faço)
Acabando por morrer
Desfeito pelo cansaço.

Ribeira de Pena, tarde de 05 de Novembro de 2011.
Joaqui Jorge Carvalho
[A pintura é um "Auto-retrato" de Almada Negreiros, datado de 1925.]

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Outubro em Coimbra


Há horas muito lindas no final de Outubro:
Um bocadinho de luz, uma palavra, um olhar.
E até o Tempo, às vezes, parece parar
No enlevo do enlevo que às vezes descubro.

Coimbra, 31 de Outubro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem ("Vinha no Outono", de José Malhoa) foi colhida, com a devida vénia, em http://mjm.imc-ip.pt.]

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Ave, Leitores. Morituri te salutant


Já o escrevi, há muito tempo; repito-o, agora: a poesia é uma espécie de “últimas palavras” de um moribundo. O poeta profere-as como que, sabendo que não tem já muito tempo, aproveita o periclitante oxigénio remanescente para dizer o essencial. Isto é, o fundamental de si que há para ficar depois de si.
O poeta laureado em 2011 com o Nobel, Tomas Tranströmer, escreve algo sobre isto (ou a pensar nisto), como ainda agora pude ler numa revista editada mensalmente pela FNAC (Novembro, 2011): “Encontramo-nos daqui a 200 anos.”
Já encomendei à MP e à VL as minhas prendas de Natal: a Claraboia, de Saramago, e a poesia (editada pela Vega) de Tranströmer. O rótulo do Nobel é chamariz não despiciendo, admito; mas determinante mesmo, em relação ao segundo dos presentinhos, foi o encontro que tive com este velho sueco através de esparsos poemas (quatro ao todo) que se me ofereceram num acaso lindo.
Gosto do cruzamento que nele há da horizontalidade do mundo & tempo quotidianos com a verticalidade religiosa (rumo aos céus) da Eternidade (pressentida, desejada, sussurrada). Esta escrita lembra a melhor poesia de alguns grandes autores portugueses, como Pessoa, Ruy Belo, Manuel António Pina, Daniel Abrunheiro, Sophia, Torga, Ramos Rosa (e de alguns menores, como eu próprio).
Deixo-vos dois poemas de Tomas Tranströmer, cheios – ambos – dessa magia que, de modo talvez nevoento, tento explicar no primeiro parágrafo desta crónica. Tomai e comei (ou bebei) todos, que este é também sangue de uma nova e eterna aliança.

Allegro

Toco Haydn depois de um dia infeliz
experimento nas mãos um suave ardor.
As teclas obedecem. Batem brandos martelos.
A tonalidade é verde, viva, aprazível.
A tonalidade diz que a liberdade existe
e que alguém se nega a pagar imposto ao imperador.
Meto as mãos nos meus bolsos-haydn
e faço de conta que encaro o mundo com calma.
Iço depois a bandeira-haydn, que significa:
“Nós não nos rendemos, mas queremos paz.”

Tomas Tranströmer
(Tradução do sueco de Alendre Pastor, in JL, ed. De 19 outubro-01 de Novembro de 2011)

Lisboa

No bairro de Alfama os eléctricos amarelos cantavam
nas calçadas íngremes
Havia lá duas cadeias. Uma era para ladrões
acenavam atrás das grades
gritavam que lhes tirassem o retrato

“Mas aqui”, disse o condutor e riu à socapa como se cortado ao meio,
“aqui estão políticos”. Vi a fachada, a fachada
E lá no cimo um homem à janela,
tinha um óculo e olhava para o mar.

Roupa branca no azul. Os muros quentes
as moscas liam cartas microscópicas.
Seis anos mais tarde perguntei a uma senhora de Lisboa
“Será verdade ou só um sonho meu?”

(Tradução de Vasco Graça Moura. In 21 Poetas Suecos, Lisboa, Ed. Veja, 1980, apud Revista FNAC, ed. Novembro 2011.)

Ribeira de Pena, 02 de Novembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho