Já o escrevi, há muito tempo; repito-o, agora: a poesia é uma espécie de “últimas palavras” de um moribundo. O poeta profere-as como que, sabendo que não tem já muito tempo, aproveita o periclitante oxigénio remanescente para dizer o essencial. Isto é, o fundamental de si que há para ficar depois de si.
O poeta laureado em 2011 com o Nobel, Tomas Tranströmer, escreve algo sobre isto (ou a pensar nisto), como ainda agora pude ler numa revista editada mensalmente pela FNAC (Novembro, 2011): “Encontramo-nos daqui a 200 anos.”
Já encomendei à MP e à VL as minhas prendas de Natal: a Claraboia, de Saramago, e a poesia (editada pela Vega) de Tranströmer. O rótulo do Nobel é chamariz não despiciendo, admito; mas determinante mesmo, em relação ao segundo dos presentinhos, foi o encontro que tive com este velho sueco através de esparsos poemas (quatro ao todo) que se me ofereceram num acaso lindo.
Gosto do cruzamento que nele há da horizontalidade do mundo & tempo quotidianos com a verticalidade religiosa (rumo aos céus) da Eternidade (pressentida, desejada, sussurrada). Esta escrita lembra a melhor poesia de alguns grandes autores portugueses, como Pessoa, Ruy Belo, Manuel António Pina, Daniel Abrunheiro, Sophia, Torga, Ramos Rosa (e de alguns menores, como eu próprio).
Deixo-vos dois poemas de Tomas Tranströmer, cheios – ambos – dessa magia que, de modo talvez nevoento, tento explicar no primeiro parágrafo desta crónica. Tomai e comei (ou bebei) todos, que este é também sangue de uma nova e eterna aliança.
Allegro
Toco Haydn depois de um dia infeliz
experimento nas mãos um suave ardor.
As teclas obedecem. Batem brandos martelos.
A tonalidade é verde, viva, aprazível.
A tonalidade diz que a liberdade existe
e que alguém se nega a pagar imposto ao imperador.
Meto as mãos nos meus bolsos-haydn
e faço de conta que encaro o mundo com calma.
Iço depois a bandeira-haydn, que significa:
“Nós não nos rendemos, mas queremos paz.”
Tomas Tranströmer
(Tradução do sueco de Alendre Pastor, in JL, ed. De 19 outubro-01 de Novembro de 2011)
Lisboa
No bairro de Alfama os eléctricos amarelos cantavam
nas calçadas íngremes
Havia lá duas cadeias. Uma era para ladrões
acenavam atrás das grades
gritavam que lhes tirassem o retrato
“Mas aqui”, disse o condutor e riu à socapa como se cortado ao meio,
“aqui estão políticos”. Vi a fachada, a fachada
E lá no cimo um homem à janela,
tinha um óculo e olhava para o mar.
Roupa branca no azul. Os muros quentes
as moscas liam cartas microscópicas.
Seis anos mais tarde perguntei a uma senhora de Lisboa
“Será verdade ou só um sonho meu?”
(Tradução de Vasco Graça Moura. In 21 Poetas Suecos, Lisboa, Ed. Veja, 1980, apud Revista FNAC, ed. Novembro 2011.)
Ribeira de Pena, 02 de Novembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
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