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sexta-feira, 18 de novembro de 2011

O segundo roubo do plasma


1. Há uns três anos, mais ou menos, eu e o resto do agregado comemorámos, com orgulho, o pagamento da vigésima prestação de um enormíssimo plasma. Só deste modo mais suave seria possível, em boa verdade, a três remediados como nós, assumir a propriedade de tal tesourinho burguês. A nossa sala-de-estar era, como não me cansei de dizer durante tanto tempo, o espaço mais rico da Casa: bons sofás, móveis modernos, home cinema – e aquele grande plasma grande! Não despiciendo para a satisfação familiar, foi o pormenor de aquela despesa, tão improvavelmente ao nosso alcance, ter sido muito bem pensada, no contexto da nossa economia apertadinha, e de religiosamente havermos sido capazes de cumprir esta obrigação extra. Certa noite, olhei para o plasma e comentei como um nababo moderno: “Isto, agora, já é mesmo nosso!”
2. Mas o diabo não dorme. Nem um mês depois daquele dia glorioso e honesto, a minha Casa em Coimbra foi assaltada e muito do que havia naquela sala passou para as mãos de uns bandidos que eu odeio para sempre. Talvez quem me roubasse tivesse necessidade imperiosa de fazer dinheiro (toxicodependência, desemprego, etc.). Mas que culpa tenho eu, medíocre operário da educação, dessa merda? (Parêntesis: a polícia não pôde fazer nada.)
3. Na minha sala, há agora uma televisão contemporânea dos anos em que o querido Sporting ganhava. Não posso, por enquanto, ter outra – e, no dia em que possa (se houver esse dia), hei-de temer que me assaltem de novo.
4. No presente mês, vou receber o meu subsídio de natal com um desconto (decidido à minha revelia) de cinquenta por cento e, nos próximos dois anos, pelo menos nesses, vão também roubar-me a totalidade dos subsídios de férias e de natal. Um governo anterior desviara já, antes, uma fatia significativa do meu ordenado. Talvez quem me roube tenha necessidade imperiosa de fazer dinheiro (para pagar o BPN, o BPP, etc.). Mas que culpa tenho eu, medíocre operário da educação, dessa merda? (Parêntesis: a polícia não pode fazer nada.)

Post Scriptum: Os senhorios não deixam de cobrar as rendas. Os bancos não deixam de cobrar as prestações. Certas vozes asininas teimam em dizer que os portugueses com vencimentos mensais entre, por exemplo, mil e dois mil Euros não se devem queixar; que se têm dívidas é por sua própria culpa; que poupassem, que se precavessem. Nunca ouviram tais cavalgaduras a máxima de que os nossos passos têm o tamanho das pernas? Pernas cortadas, como manter a mesma amplitude dos passos? O meu plasma foi tranquilamente pago porque fiz as minhas contas responsavelmente, tomando como certo que não me roubavam os recursos com que a cada mês conto. Se Sócrates ou Passos Coelho me tivessem assaltado mais cedo, talvez não conseguisse pagar aquele saudoso plasma. É muito triste roubarem-nos o fruto do nosso trabalho, irmãos, sem que a polícia possa fazer nada.

Ribeira de Pena, 18 de Novembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (os Metralhas, de Disney) foi colhida, com a devida vénia, na wikipedia.]

2 comentários:

Paulo Pinto disse...

Pois. As lojas queriam vender e propunham financiamento. Os bancos alinhavam, avançavam com o dinheiro e cobravam-nos os seus juros. Quem comprava, fazia as suas contas e, na grande maioria das vezes (como tu) honravam os seus compromissos, sob pena de execução de hipotecas. Agora, culpam-te e culpam-nos por termos recorrido ao crédito que estava disponível e barato. Culpam-nos por ter sonhado com uma vida melhor. Devíamos ser europeus geograficamente, mas latino-americanos economicamente. Em todo o caso, quem paga agora somos nós.
Quanto à primeira parte do teu post, perdoa-me o mau gosto, pois compreendo a frustração e a revolta, mas (sem ironia) pareceu-me uma narrativa perfeita para uma parábola moralista sobre a futilidade dos bens materiais.

Anónimo disse...

Obrigado, Paulo, pelos teus luminosos comentários.
Abraço!
JJC

PS (salvo seja): Compreendo a tua visão parabólico-moralista", mas a mim a coisa doeu-me (e dói-me) muito, muito! E odeio mesmo os bandidos de cada um dos "plasmas".