Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sábado, 3 de junho de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (90)


Elogio da normalidade

Há umas décadas, por alturas da Páscoa, comprei um saquinho de bombons de origem francesa, que se caracterizavam, em especial, pelo imaginoso invólucro do chocolate – uns (assim chamados) papillottes, no verso dos quais aparecem axiomas, versos, provérbios. Retive um texto em particular, cuja autoria lamento não ser capaz, agora, de reproduzir (e cito, obviamente, de cor): “Enganam-se os medíocres que pensam ser possível disfarçar a sua mediocridade quando alcançam lugares elevados. Sucede o contrário: sob a luz da ribalta, os defeitos tornam-se mais notórios e ridículos.”
O conceito é-me muito caro e pertinente. E apetece acrescentar, em coerente contraponto, que no caso dos excelentes é provável que se potencie a percepção da sua honesta excelência.
Utilizei, há muitos anos, este raciocínio para troçar de Bush, o ex-presidente do Estados Unidos da América. Talvez me tenha precipitado, sinto-o agora; aquele papillote estava à espera de uma avantesma maior, de um putativo comandante-em-chefe ainda mais improvável. Falo-vos de Donald Trump, aquele saloio rico que está hoje à frente da maior potência do planeta. 
Já passou, mais ou menos, aquele primeiro choque da eleição de um boçal abastado, sem escrúpulos nem cultura, sem maneiras nem humanismo, sem vergonha na cara nem nos discursos. Já passou, mais ou menos, a estupefacção perante o facto de milhões de americanos o terem escolhido (incluindo-se nesta multidão as óbvias vítimas a haver). Por muito má que fosse a senhora Hillary, não era possível o que foi possível – eleger aquela inchada torre de nada.
Ao longo de quase meio ano, confirmámos a impreparação desta criança mimada e serôdia: a sua vacuidade, o seu patológico egocentrismo, os seus erros ortográficos no twitter, as suas falhas de conhecimento em Geografia, História, Administração Pública, Segurança, Política Ambiental. Vimo-lo, não há muito, pela Europa, passeando com a sua esposa-troféu, fazendo esgares autoritários, beicinhos infantes ou poses de esforçada concentração (acenando com a cabeça para os outros perceberem que ele percebia muito bem o que lhe diziam).
A sua linguagem afigura-se, às vezes, tão minimalista como a de um aluno do 1.º ano ou a de uma tia chique e oca: é tudo sensacional-espectacular-fantástico-maravilhoso-fixe, ou horrível-horroroso-horrífico-mau-mesmo-mau. É tudo a coisa melhor de sempre (ou do mundo), a maior de sempre (ou do mundo), a mais deliciosa de sempre (ou do mundo), mas pode também ser a coisa pior de sempre, a mais intragável de sempre, a mais odiosa de sempre. O mundo está, naquela cabeça cheia de ar, dividido entre bons e maus - estando consigo os bons e contra si os maus, naturalmente.
Entretanto, é capaz de despedir um director do FBI porque este não suspendeu investigações embaraçosas para a presidência, de vender armamento num valor de milhares de milhões de dólares à sinuosa Arábia Saudita, de revelar alegremente segredos militares à Rússia, de prometer a resolução rápida e não tão difícil como se diz do conflito israelo-palestiniano.
O que se salva disto é a liberdade que há – ainda – no país de Faulkner, Steinbeck e Hemingway, onde indivíduos e instituições não se demitem do seu dever de zelar pelo Estado de direito (agora sob ameaça, como se tem visto). A liberdade e o humor corrosivo de muitos homens e mulheres habituados a ser livres. Entre tantos, daqui celebro um gigante chamado Stephen Colbert, que apresenta o programa televisivo The Late Show, na CBS. Divirto-me tanto a ouvi-lo quanto decerto se incomoda o anafado big boss do nosso descontentamento. A última proposta de Colbert foi que os juízes federais aproveitassem o périplo presidencial pelo estrangeiro para aprovar finalmente o fecho indiscriminado das fronteiras, propostas por Trump, a quem quer entrar nos Estados Unidos.
Nunca como agora o mundo percebeu como Obama era um presidente decente. No mínimo, porque era um presidente preparado, competente, previsível. Numa palavra, normal.


Vila Real, 27 de Maio de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 01-06-2017.]

1 comentário:

Paulo Pinto disse...

A tua descrição de Trump é magistralmente certeira, e também penso que não há precedentes de alguém de tão baixo nível no cargo, que até faz George W parecer um presidente apresentável. Não há memória de alguém tão impreparado nem tão oco nas ideias e no discurso, mas sobretudo não há memória de um ego destes ter alcançado a presidência dos EUA. É uma espécie nova, produto da evolução: um adolescente septuagenário.