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Número de Ondas

terça-feira, 13 de junho de 2017

Os passos em volta


Não tenho a certeza de que aconteceu o que a seguir vos relato como tendo acontecido. Talvez se tratasse simplesmente de um sonho. Talvez seja um livro qualquer, lido há muito, subitamente reclamando importância na minha memória. Talvez fosse a imagem de um filme vagamente acompanhado por meus olhos cansados, nessas madrugadas pastosas em que não conseguimos dormir e tão-pouco estamos acordados. Encontrei-me com Deus. Ele estava dentro de um Austin Mini, atrás do volante.
O Austin Mini deste relato era um carro que comprei em 1983, usado e em muito mau estado, necessitando de reparação urgente a nível de motor, de chapa e de pintura. A ideia era comprar peças, avulsamente, e ressuscitá-lo, mas aquele automóvel nunca mais voltaria a andar.
Deus tinha as mãos sobre o volante, como se guiasse. Não sei bem descrevê-Lo. Talvez o seu rosto fosse semelhante ao de Herberto Helder, pouco antes de o poeta morrer. Eu disse: “Meu Deus!”
E ele: “Conheceste-Me logo?”
Eu continuei o meu grito: “Meu Deus! Este era o Austin Mini que comprei em 1983, com o dinheiro que ganhei a trabalhar na Fábrica Estaco!”
Ele disse: “Lembro-me bem da Estaco. Foi pena ter falido. Quando lá trabalhaste, havia muitas encomendas e muito dinheiro a entrar. Até para Singapura exportavam…”
Tanta sapiência confirmou que Ele era Quem era.
“És Deus?”
Ele assentiu com um sorriso omnipresente. Recordando isto, creio ter reparado em certo pormenor zigomático que, visto de agora, lembra o esgar inteligente do jornalista Daniel Oliveira.
Entrei para o carro e perguntei-lhe: “Que estás aqui a fazer?”
Deus levou alguns segundos a responder-me. Fê-lo serenamente, num murmúrio que só à custa de muita concentração me tornou audível o catecismo: “Não estou bem aqui. Aliás, não estou apenas aqui. Estou em toda a parte. Nunca to disseram?”
“E por que me apareceste? Isto é, por que estás a falar comigo em particular?”
“Sinto que andas triste. Incomoda-me que andes triste. Quero que me fales dessa tristeza.”
Eu, na verdade, nem sabia que andava triste. Pelo menos, não sabia que andava mais triste do que o habitual. A circunstância de Ele o perceber era a prova de que era Deus. Ou Herberto Helder.
“Pois bem, eu digo-Te o que me faz triste.”
Falei-lhe sobretudo da velhice, das doenças, da mortalidade. Das pessoas cujo desaparecimento é uma ofensa, uma indignidade, uma dor que nos torna para sempre deficitários de mundo e de felicidade. Da azia (física e metafísica) do ter havido e do já não haver. Percebi que ele sabia que eu falava de meu Pai, do mestre João (meu sogro), do meu amigo José António Conceição, do meu cunhado José Manuel, de juvenilíssimos alunos e de mães ou pais de juvenilíssimos alunos. Julgo até ter visto (mas não garanto) uma lágrima (ou uma promessa de lágrima) escorrendo por seu rosto de estátua viva, enquanto fingia conduzir o meu Austin Mini sem conserto.
Disse-me, então: “É a vida. A vida das pessoas também é feita dessas feridas que levam tempo a sarar.”
Eu disse: “Algumas não saram.”
Ele repetiu o que eu dissera, e a sua voz era exactamente como a minha: “Algumas não saram.” (Talvez fosse eu próprio a repetir-me.)
Deu-me para ficar nervoso: “Mas és Tu, segundo se diz, Quem fez o mundo, a vida. Por que raio há morte? Por que raio decidiste que haveria morte?”
Era este o momento, penso eu agora, de Ele falar da vida eterna que há depois da experiência terrena. Do “Vale de lágrimas” que antecede o Céu livre da morte. Mas não. Suspirou, encolheu os ombros e saiu do carro: “Isto da morte foi um erro. Lamento-o, sabes?”
E desapareceu.
Se isto que vos conto foi verdade, ainda houve tempo para eu ficar, por uns minutos mais, naquele carro mínimo, que comprei sonhando com viagens fantásticas, tardes de praia, namoro ambulante.
Saí depois para a madrugada, já a rua começava a sua lida utilitária de vozearias e de passos. A minha tristeza (que sempre escondo genialmente, para me furtar à piedade e ao falatório de circunstância) permaneceu comigo. Levo-a para todo o lado, até para crónicas de jornal.
No Sábado, à noitinha, voltei a ver o “Eixo do Mal”, na Sic Notícias. Tive outra vez a impressão de que o Daniel Oliveira fala bem e é fisicamente parecido com Deus.

Vila Real, 11 de Junho de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.publico.pt.]

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