Bússola do Muito Mar

Endereço para achamento

jjorgecarvalho@hotmail.com

Número de Ondas

quinta-feira, 8 de junho de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (91)



Serviço de urgência

Passamos a vida a adiar. Às vezes, fazemos bem. Mas a universal mania de procrastinar é, em si mesma, perigosa. De um momento para o outro, já fechou a loja, o balcão, o restaurante. Num piscar de olhos, passou-se (d)o prazo. Em menos de um fósforo, ardeu-se-nos a vida.
Se, à luz do preâmbulo, julgavam que eu vinha para aqui zurzir na ideia de descanso, estais redondamente enganados. Eu sou capaz de trabalhar horas a fio, mas a minha maior vocação é o ócio. Não o vejo como perda de tempo nem como actividade desprovida de méritos: é, aliás, coisa que requer disponibilidade e jeito. O meu Pai ia pouco à praia e era incapaz de aí ficar mais do que breves minutos a olhar para o mar. Levava-nos e fugia, com ou sem pretextos (a minha Mãe desconfiava, quase sempre, de saias). Era, para mim, um mistério esta incapacidade do meu Pai: ele tinha consigo o rádio de pilhas, jornais, cerveja, filhos para jogar futebol, mas era-lhe insuportável a quietude de estar-simplesmente-ali, sem um objectivo (digamos assim) prático. Chegámos a sentir pena do patriarca, tão fora da nossa felicidade absoluta: ele não percebia que ali era o espaço da liberdade mais linda, da paz feita de Sol e de odor oceânico, das raparigas bonitas desfilando pelo areal, de pão com marmelada e livros, de mergulhos e cambalhotas, de imortalidade.
Regresso ao Presente. O fim-de-semana que passou era uma excelente oportunidade para eu ir à praia. Mentalmente, fizera o itinerário há uns dez dias, enquanto bebia uma cerveja preguiçosa no ocaso de certa tarde muito quente. “Apetece-me muito ir à praia”, disse-me eu sem mexer os lábios. “Concordo”, respondi-me, sem que outrem pudesse ouvir. Ficou combinado.
Entre os planos e a concretização dos planos, meteu-se a vida de permeio (como diria o beatle Lennon): luzes de casa para substituir, carro da Filha para levar à oficina, testes para classificar, consulta de dermatologia para a Mãe. No meio da azáfama burguesa, ainda havia espaço para espreitarmos a praia da Tocha? Havia. Enrolou-se-me, contudo, a famosa serpente da fadiga, espécie de pântano com braços, que simpaticamente nos vai afogando pés, pernas, tronco, vontade. “Hoje, já não vamos”, disse-me eu, no Domingo, sem mexer os lábios. “Também já não me apetece”, respondi-me, sem que outrem pudesse ouvir.
Tudo isto é demasiado prosaico, receio eu, para o inscrever em crónica de jornal decente. Mas, já no encerramento de Domingo, em vésperas do regresso à lida transmontana, aconteceu-me falar em família naquela ideia antiga de arrendarmos, talvez em Agosto, uma casa na Tocha, dividindo despesas e convivendo todos por uma semana ou duas. E de, ao entusiasmo espontâneo, sucederem algumas reticências, porque alguém se tinha comprometido já com casa no Algarve, porque alguém comprara já bilhetes para a Madeira, porque vinha família do estrangeiro na mesma altura, porque não se sabia o que podia acontecer entretanto (gente idosa &, doenças), etc. Então, eu disse, num bocejo resignado: “Não há problema. Se não for neste ano, vamos no próximo. Temos tempo.”
Ora, nesse instante, a minha querida Mãe, provavelmente a marimbar-se para a praia e a pensar em paisagens mais além, contrapôs: “Cada vez temos menos tempo.
De modo que é assim: adiar é coisa perigosa. Já vo-lo tinha dito?

Coimbra, 05 de Junho de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 08-06-2017.]

Sem comentários: