Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Primavera à espera



Ei-lo, o Inverno violento -
Fere-nos a fria natureza
Afoga-nos a chuva, o vento
Magoa-nos sem delicadeza.

Não podes tu senão esperar
A vinda outra vez da Primavera.
A mim, se vires quase chorar
Sabe que também estou à espera

Do Sol que nos salva do Inverno:
Vigio cada chão e cada flor
Anoto quanto vejo em meu caderno

Cada nova forma, cada cor.
E se sinto luz num beijo terno
Chamo Primavera ao meu amor.

Ribeira de Pena, 16-12-2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.visitmosca.com.]

ZONA DE PERECÍVEIS (67)



Conhecimento de causa(s)
 Em Retrato do artista enquanto jovem, James Joyce apresenta-se-nos como estudante de um Colégio de Jesuítas, o melhor aluno da sua geração, que obtém – ao longo dos anos de estudo – as mais altas classificações e os mais sentidos louvores de seus mestres e condiscípulos. Chegado o momento da (mui provável) ordenação, comentava-se: que extraordinária figura da Igreja deviria este rapaz, tão profundamente versado já nos segredos da Fé! Que carreira decerto o esperava! Aconteceu, contudo, que o jovem, em vez de confirmar as expectativas à sua volta, disse que não queria ser ordenado. Pior: revelou não acreditar naquilo que a Igreja postulava (conteúdo, forma, rituais). Mas então – contrapunham desconcertadamente os professores, os colegas, os familiares – para que fora tanto estudo e dedicação, e de que servira obter tão elevadas classificações nas múltiplas provas realizadas? O rapaz respondeu-lhes que estudara muito bem tudo quanto era e significava a Igreja para perceber bem o que era e significava a Igreja; que chegara a hora de, com a autoridade de quem comprovadamente sabia do assunto, lhes dizer que não acreditava nos pressupostos, na lógica e nos objectivos da instituição milenar. E, já agora, que ele não tinha fé.
Eu conheci, nos tempos da faculdade, um moço (salvo erro, de Geografia) que fez o exigentíssimo curso dos comandos. Fê-lo, ainda por cima, como voluntário. Passou nos testes preliminares, fez a instrução toda, ultrapassou as variegadíssimas dificuldades de que, só de ouvir dizer, suspeitamos, venceu o sono, a fome, a sede, a fadiga extrema e os fantasmas mais arrepiantes da mente humana. Quando chegou o dia, normalmente glorioso, de receber a boina vermelha, símbolo consabido da condição – adquirida, plena, conquistada – de comando, um graduado fez-lhe a pergunta protocolar (gloso-a de cor): “Aceitas a boina?” Ele respondeu, com a maior desfaçatez, que não. Mas então – contrapuseram oficiais e sargentos, camaradas de curso, familiares, amigos – para que fora e servira tanto esforço e tanta dedicação, se agora recusava os justos louros da cumprida empresa? O jovem disse-lhes, com candura insuportável: “Queria ver se era capaz, mas percebi que isto, para mim, não tem lógica, razão de ser, valor. Não quero.”
Há menos de uma semana, reencontrei um companheiro antigo, dos tempos do futebol coimbrinha. A gente conhecia-o pelo fervor com que militava numa certa juventude partidária: sabia tudo sobre datas de congressos e convenções, eleições, listas de candidatos a isto e àquilo do partido, seus concorrentes eventuais à presidência da jota, etc. Dizíamos, mais com amizade do que com ironia, que ele ia longe. Ele não foi longe, politicamente; mas licenciou-se, tem um emprego agradável, mulher, filhos, corre no Choupal com o cão e ainda tem os pais vivos. Diz-se feliz e assegura que aquilo das jotas é uma ilusão e uma falsidade (ilusão e falsidade juvenis, treino para a ilusão e falsidade adultas). Não me deixa aprofundar as causas do desencanto e do asco: “Eu sei do que falo, Quim!”
E eu, caros leitores, vou sabendo um bocadinho do que escrevo.
Coimbra, 15 de Dezembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 17-12-2016.]

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (66)



Uma colher de prosa
Em parceria com a CPCJ (Comissão de Protecção de Crianças e Jovens) de Cabeceiras de Basto, a minha Escola assinalou, em finais de Novembro, a importância de prevenir e atacar as agressões sobre mulheres. Coincidiu o facto de, na leitura matutina do JN (edição de 25-11, página 22), ter ficado a saber que “a GNR de Braga actuou em mais de mil crimes de violência doméstica nos primeiros dez meses do corrente ano”.
Deixei que o assunto tomasse conta de parte da minha aula de Português, comovido com o interesse dos alunos do meu 7.º ano de escolaridade. Disse-lhes que se trata de um flagelo (expliquei-lhes o que é um flagelo); que só há pouco tempo passou a tratar-se trata de um crime público (o Z.M. perguntou-me: “Mesmo que a polícia soubesse, o gajo não ia para a prisão?”); que a melhor – a única – maneira de reagir à primeira agressão do namorado ou do marido é deixá-lo de vez; que é pior se o agressor tiver oportunidade de agredir novamente, porque se passará a sentir dono da vítima, capaz de matar para proteger, no futuro, a sua “propriedade”; que tenho uma Filha e que já lhe disse o que agora lhes dizia a eles (“É como se nós também fôssemos seus filhos”, disse a T.C., e ninguém se riu).
Depois, o V.L. disse que também havia homens agredidos pelas mulheres e que alguns até tinham vergonha de se queixar. Entre gargalhadas, o S.M. disse que nunca bateria numa mulher, mas que também não a deixaria “molhar a sopa” nele. A T.C., que é uma inteligência admirável, disse que os homens, nestes casos, estavam “entre a espada e a parede”, pois não podiam bater nelas por ser uma cobardia, nem podiam queixar-se à polícia para evitar o ridículo.
O C.C. achou que esse problema, comparado com o das mulheres, era “uma gota no oceano”, já que a maioria das agressões caía sobre as desgraçadas das namoradas ou das esposas.
Eu tinha de falar dos graus dos adjectivos e procurei rematar o debate, sublinhando a necessidade de rapazes e raparigas estarem alerta para as ameaças de que faláramos. Relembrei-lhes a importância (vital) da “tolerância zero” para com os agressores. Acordei-os para a indignidade daquela frase antiga – “entre marido e mulher, não metas a colher”.
A T.C. ainda se saiu com esta: “Se a pessoa tolera, depois já não pode fazer nada.” Eu contrapus: é sempre tempo de (re)agir, de fugir da companhia de uma besta violenta. Ela retorquiu-me (com a evidente concordância de muitos dos seus colegas): “Mas depois pode haver filhos e a mulher já aguenta tudo por causa deles…”
Eu não desisti de uma conclusão optimista e insisti: os filhos não são felizes num contexto de constantes ameaças e agressões à Mãe. E obriguei-os (digamos assim) a prometer-me que, agora e sempre, se recusariam à escravatura da resignação e do medo. Lancei-lhes uma pergunta (quase retórica): “De acordo?” 
Obtive algumas (raras) respostas murmuradas: “De acordo.”
Mas o que se ouvia mais, nessa hora epilogal, era o mutismo muito circunspecto daquelas meninas e daqueles meninos. Que histórias domésticas (interrogo-me) haverá por detrás desse silêncio? Que dramas? 

Vila Real, 04 de Dezembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 08-12-2016.]

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (65)




Criadores, criaturas e criados
 
Certa figura pública (aliás, certo figurão com grande notoriedade mediática) terá publicado – dizia-se, diz-se – livros cuja autoria real coube a outra pessoa. A ser verdade, o episódio acrescenta à criatura objectivas razões para a nossa repulsa e o nosso nojo moral. Com efeito, ter um livro publicado que, afinal, não escrevemos, para além do óbvio ridículo, é um sintoma de profundíssima patologia: significa o absoluto desprezo pela verdade e, em particular, pela ideia de talento. O medíocre, incapaz de criar, compra e exibe como sua a arte alheia. Que fenómenos haverá nas catacumbas da consciência do vigarista, de cada vez que alguém lhe dá palmadinhas nas costas e o felicita pela “sua” obra?
O pior dos cenários é o falso autor desvalorizar esses quaisquer rebates de consciência que, numa pessoa normal, decerto haveria. Os remorsos, na perspectiva dos cínicos incuráveis, são manifestações de fraqueza. Discípulos de Maquiavel, recusam-se a ver imoralidade no que fazem e são perigosos, naturalmente, pois a amoralidade é, a par dos fundamentalismos mais primários, a pior ameaça dos nossos dias.
O caso de quem vende o seu talento académico-literário, abdicando da paternidade oficial do trabalho realizado, é igualmente merecedor de reflexão. Será que todo o dinheiro do mundo compensa a frustração (concomitante ou deveniente) de ver outrem a colher os louros do nosso esforço? Na verdade, creio que a situação é ainda mais hedionda: apetece-me comparar esta gente aos pais que vendem os filhos. Talvez haja neste universo misterioso dos ghost writers, quando vistos à mesma luz dos pseudo-escritores, uma simétrica amoralidade. (Ou então, na mais mirabolante e bondosa das hipóteses, uma santíssima abdicação da ribalta.)
Se, por hipótese, um grande escritor - amado e consagrado escritor - me viesse pedir que lhe vendesse (a preço de ouro) um simples poema da minha autoria, saberia nesse instante que ele não era, de facto, grande, nem amável, nem digno de sagração. E eu ficaria com o meu poema. Sem o seu dinheiro. Essencialmente rico, portanto.
 
Vila Real, 25 de Novembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 01-11-2016.]

Café do Perestrelo (Machico, Madeira) - ou o que é a Felicidade



Perguntas: A felicidade, o que é?
Certa vez (digo eu) num Café...

Histórias, não (dizes), um conceito
Que possas explicar e eu percebê-lo.
Respondo: um momento perfeito –
Eu no Café do Perestrelo.

Está a bica, o jornal, o Sol brilhando
Tu pensando em mim onde estiveres
A rua da Árvore guardando
O voo andarilho das mulheres;

Ao fundo, a praia perto, o Mar
Inquietações de barcos, pescadores
Turistas ocupados a guardar
Mil cheiros, mil formas e mil cores.

E tudo ser meu completamente
No cósmico instante d’existir!
Ó serena exaltação desse Presente!
Ó alegre juventude d’existir!

Perguntas: a felicidade, o que é?
Respondo: eu, certa vez, num Café...


Vila Real, 27 de Novembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, na net.]

 

ZONA DE PERECÍVEIS (64)




Dinis para o povo

Ando, desde Junho do corrente ano, a divulgar o meu livro Júlio Dinis – As Pupilas do senhor escritor, versão (mais elegante) de um trabalho académico sobre o autor de A Morgadinha dos Canaviais.
Comigo, já tive amigos e conhecidos em Ribeira de Pena, Coimbra, Ovar e Cabeceiras de Basto. Em cada apresentação, tenho tentado explicar o meu amor pela literatura e, em concomitância ilustrativa, o enlevo provocado por Júlio Dinis a um menino de dez anos, sedento de histórias (sedento de mundo) e já irremediavelmente apaixonado por esse objecto para sempre extraordinário – o livro.
Nestas ocasiões, tenho confessado (sem orgulho no relato feito) que, pouco depois da conclusão do ensino primário, roubei um exemplar de As Pupilas do Senhor Reitor, retirando-o veladamente de um escaparate. O crime ocorreu em plena baixa coimbrã, a meio da manhã, junto ao quiosque onde minha Mãe comprava a Crónica Feminina: usando como luva o jornal A Bola (à época, um trissemanário gigantesco em tamanho e em qualidade literária), libertei o romance da mola aprisionadora e trouxe-o entre as notícias do campeonato de futebol de 1973. Perante o facto consumado (roubo e vaidade desavergonhada do relato), a minha Mãe pregou-me uma bofetada sonora e garantiu-me que, na próxima oportunidade, devolveria o livro ao dono. Nunca se cumpriu essa promessa. Mas eu formei-me em Letras, fiz pós-graduações, mestrado e doutoramento – e defendi, em Julho de 2011, uma tese intitulada Acção, Cenas e Personagens na Narrativa Dinisiana – As Pupilas do Senhor Escritor. Acreditei (acredito) que assim paguei a dívida à minha progenitora (não, hélas, a que eternamente me ficou para com o dono do quiosque).
Poupo os meus leitores à revisitação do conteúdo essencial da dissertação, mas trago para a crónica um sumário fundamental: que há no fenómeno da literatura (e, em particular, no da narrativa) real interesse e real utilidade; que a literatura nos ajuda a organizar/verbalizar/tornar visível - sob a forma de palavras, i.e., de vida(s) – o que, de outro modo, seria menos claro, menos gratificante, menos lindo. E ainda: que, na escolha do cânone escolar para o ensino básico e secundário (selecção de autores e obras a estudar, no contexto da educação literária e no da aquisição de hábitos e gosto de leitura), nem sempre as eminências & reverências & excelências da universidade têm razão. Há alguns nomes que, não obstante o relativo desprezo a que são votados, são mais indicados pela sua leveza, pela sua graça, pela sua simplicidade, pela sua amabilidade, pela sua eficácia narrativa. [Não confundir, por favor, leveza, graça, simplicidade, amabilidade e eficácia com vulgaridade ou banalidade!]
Um Amigo, que fez o favor de apresentar o meu livro em Ovar, usou uma forma lapidar para a enunciação desta acessibilidade ideológico-fruitiva da obra dinisiana – disse que Júlio Dinis escreveu “para o povo”.
O povo leitor somos (todos) nós, os mais ou os menos instruídos, os dotados de maior ou de menor conhecimento vocabular e sintáctico. E isto de se amar a literatura à roda de um mesmo autor, cujo génio foi (é), por natureza, avesso a rótulos cómodos ou fáceis (um autor que apenas quis contar histórias, de forma simples, elegante e clara), não será coisa de somenos.
Eu tinha dez anos e vi aquele livro de capa azul no escaparate de um quiosque, preso por uma mola. Libertei-o da prisão e trouxe-o comigo para sempre. Tirando o pormenor – lamentável - do roubo, foi (sei-o hoje) um acto de liberdade e de amor.
 
Coimbra, 20 de Novembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 24-11-2016.]