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Número de Ondas

sexta-feira, 20 de maio de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (39)



Mexia, Sophia e o Mexilhão

António Mexia, o senhor CEO da EDP, saiu-se há pouco tempo com mais esta pérola: as tarifas sociais da electricidade não devem ser financiadas pelo gigante que ele administra. Por razões de “justiça” (sic), devem ser suportadas pelo Estado ou pelos consumidores não beneficiários de quaisquer descontos. 

As declarações não são apenas (mais) uma chinesice. Traduzem o pensamento do abastado português ao leme da EDP, tendo chegado numa semana em que se soube dos lucros obtidos pela empresa (mais 11% no primeiro trimestre do que no período homólogo anterior) e da remuneração bestial do cidadão Mexia (3,1 milhões de euros anuais, sendo o executivo mais bem pago do PSI-20). 
Não estou qualificado para discutir a noção de “justiça” no contexto – mui enviesado – da economia que o capitalismo internacional tão religiosamente defende. Por razões de higiene, prefiro sorrir, afastar-me e tapar o nariz. Mas considero espantoso que hoje, num país cheio de desempregados e de gente mal paga, haja quem se arrogue o direito de falar em “injustiças” referindo-se ao dinheiro gasto com quem mais precisa. O facto de o CEO da EDP ser português torna aquela homilia caricatural e, do lugar de onde a vejo, pornográfica. 
O cinismo mundial parece autorizar, aos Mexias do nosso pobre Presente, raciocínios amorais deste jaez e, num cúmulo de indecência, oferece-lhes até tribuna mediática para fazerem pedagogia sobre o pântano em que triunfantemente (quero dizer: fartamente, obesamente, desmesuradamente) engordam. 
Quando se celebrar o Dia Mundial da Hipocrisia, ainda espero ouvir o senhor Mexia a declamar, em cerimónia patrocinada por um grupo económico qualquer, decerto com uma lágrima chique ao canto do olho, certos versos de Sophia: "«Ganharás o pão com o suor do teu rosto» / Assim nos foi imposto / E não: / «Com o suor dos outros ganharás o pão.»" Está isto num poema intitulado “As pessoas sensíveis”, que termina assim: “Ó vendilhões do templo / Ó construtores / Das grandes estátuas balofas e pesadas / Ó cheios de devoção e de proveito / Perdoais–lhes, Senhor / Porque eles sabem o que fazem.” 

Nota final (com rima inesperada): esta crónica foi escrita à noite, à luz de um candeeiro modesto, antes da releitura de um belo volume de poesia intitulado Livro Sexto. Comove-me a ideia de que manter a luz acesa para ler Sophia também contribui para a abastança do senhor Mexia.

Vila Real, 14 de Maio de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho

[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 19-05-2016.]

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