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sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (22)


 
O teste do Estado Novo

 Estou recenseado a cerca de 250 quilómetros do local onde trabalho há já 20 anos. Nunca me apeteceu mudar o local de voto e, com feroz militância democrática, nunca incumpro o dever de votar – ainda que o exercício me fique caro em gasóleo, portagens, fadiga e desilusões.
Confesso que as próximas eleições para a presidência da República inauguraram em mim, pela primeiríssima vez, a miserável tentação do absentismo. Deve haver nisto algo de preguiça, admito. Mas é sobretudo a sensação de que o meu voto, como o dos outros, pouco contribuirá para a melhoria do país, da sociedade, da nossa vida em concreto.
Creio que Aníbal Cavaco Silva é o responsável maior pela banalização e menorização do lugar e da função. Há-de parecer arrogante o que aqui vos digo, mas lamento muito a passagem pela presidência do presidente cessante. Para um cargo assim, exigir-se-ia alguém com outra profundidade intelectual e outra densidade cívico-humanística. Ficarão para a História os seus discursos redondos, vagos e genéricos, decerto candidatos ao título num campeonato mundial de clichês que houvesse. O pior de tudo, mesmo assim, foi a sua falta de currículo democrático. Deixai que me explique.
Eu não sei o que faria se tivesse 20-30 anos em pleno Estado Novo. Teria lutado contra a guerra colonial, a Pide, a falta de democracia – ou teria, como tantos, aceitado as regras em vigor, salvaguardando a carreira, o conforto e a segurança mui pessoais? Eu gosto de pensar que teria combatido a ditadura, escrito e gritado pela liberdade, conjurado contra a guerra. Mas não posso, em rigor, garantir que seria isso a acontecer. Não estava lá.
No caso dos que, como Cavaco, eram adultos na época do Estado Novo, sabemos o que se passou. Ele nunca lutou contra o fascismo porque – explicou – estava ocupado a estudar. Fez, aliás, o seu doutoramento em Inglaterra, pátria secular do parlamentarismo democrático, sem que tal lhe acordasse angústias comparativas. Nunca se incomodou publicamente com o atraso português em matéria de condições de vida e de liberdades. Nunca se lhe conheceu uma palavra crítica sobre a guerra colonial. Aceitou o statu quo histórico e fez pela vidinha.
Outos, como Soares, Cunhal, Jorge Sampaio, ou – em plena Assembleia Nacional – como Francisco de Sá-Carneiro ou Pinto Balsemão, ousaram indignar-se e lutar, com naturais prejuízos pessoais e profissionais.
Não julgo Cavaco pelo que, à época, não fez. Não me sinto sequer superior, porque não posso garantir (já o disse atrás) que, em contexto igual, eu tivesse sido melhor do que ele. Mas um presidente da República deveria ser sempre, perdoai o romantismo, um dos melhores exemplos da nação, e esse pressuposto compreende a questão da coragem e da plena cidadania.
Pois, talvez eu próprio não passasse no teste do Estado Novo. Não o sei. Mas sei que Cavaco, esse, não passou mesmo – e que, contudo, foi presidente do nosso país por dois mandatos consecutivos.

Ribeira de Pena, 07 de Janeiro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 14-021-2016.]

2 comentários:

Paulo Pinto disse...

Sem deixar de concordar com o que dizes, eu relativizaria mais a postura de Cavaco Silva nesse período da sua vida: não seria difícil a um estudante universitário de uma cidade grande, oriundo de família abastada, notável e/ou politicamente activa, tomar posições, participar em greves, frequentar meios da oposição ou ser um «renovador» na ala esquerda do regime; Cavaco era de uma pequena terrinha quando o Algarve era só pesca do atum, de família pobre e sem ligações. Aceita-se como natural, num feitio algo ascético e desajeitado que é o seu (e nisso lembra bem Salazar), que tratasse de subir na vida e cumprir o sonho da família que talvez se sacrificasse para o guindar à condição de doutor. Não nos esqueçamos de que nós somos em boa dose (e sobretudo na primeira metade da vida) o que a vida faz de nós - e isso inclui em que berço nascemos, quem nos embalou, que palavras crescemos a escutar, que rede de segurança temos por trás, que auto-conceito construímos.
Por isso não o julgo, como tu aliás resistes (e bem, acho eu) a julgá-lo.
Mas se aí ele não desempenhou o papel que seria de esperar de alguém merecedor de ser um Presidente da República, poderia tê-lo feito depois, com a notoriedade e o estatuto que conquistou, depois de se ter tornado ministro das Finanças de Sá Carneiro e de ter passado uma década a chefiar o Governo, aliás num tempo de crescimento sem precedentes no País. À parte alguns comentários pertinentes sobre a sua especialidade e uma ou outra intervenção mais oportuna, a presidência de Cavaco foi de facto uma desilusão e desprestigiou a função presidencial. Não foi um árbitro isento, não foi um moderador eficaz, não foi uma fonte de inspiração, não criou empatia, não transmitiu esperança quando ela mais era precisa.
Pelo menos poderia ser confiável e de uma honestidade a toda a prova. Nem isso. Não terá transgredido a lei, mas soube cavalgar o lucro fácil no devido tempo graças aos amigos influentes. Por essas e por outras, ninguém vai ter saudades dele. Mais valia ter ficado pelo primeiro mandato.
Os candidatos que temos agora são muitos. Sinceramente, simpatizo com todos, cada um à sua maneira e na sua medida. Esse teu esmorecimento tem um lado positivo: se houvesse um facínora a concorrer, irias de certeza a correr para a urna para votar num dos seus adversários! Cavaco Silva já passou: que esse pensamento te anime. E não esperes demasiado de um Presidente: se não for uma referência moral e política, que pelo menos cumpra bem a sua função e não nos envergonhe!


Joaquim Jorge Carvalho disse...

Caro Amigo,

Agradeço o teu comentário. Creio que tudo quanto dizes faz sentido. Em boa verdade, julgo que estamos fundamentalmente de acordo. E espero sinceramente que o nosso próximo PR esteja à altura da função, ou - como bem dizes - não nos envergonhe. Abraço! JJC