Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (20)



O Natal como Júlio Dinis

Dou por mim a cruzar a ideia de Natal com Júlio Dinis. Quando ouço colegas e amigos fazendo planos para “ir à terra” passar a consoada, ocorre-me que a minha aldeia natal é a mesma do José das Dornas, da Morgadinha dos canaviais ou do Tomé da Póvoa. E aquele jantar de família, a 24 de Dezembro, apesar das tantas ausências, é um regresso provisório ao mundo simples e grato que Júlio Dinis inventou.
Comecei a ler este escritor aí pelos dez, onze anos. O primeiro romance que devorei foi As Pupilas do Senhor Reitor. Logo a seguir, veio Uma Família Inglesa (que revisitei no ensino secundário por esta obra fazer, à época, parte do cânone escolar). Depois, A Morgadinha dos Canaviais. Finalmente, Os Fidalgos da Casa Mourisca.
O que me encantou, desde muito cedo, foi a clareza e elegância da prosa, claro, mas também a espantosa qualidade dos vívidos diálogos e a tão perfeita arte de bem contar uma história. Uma história bem engendrada funda-se numa intriga, mas tem de, para ser literariamente relevante, compreender mais do que isso: é preciso que nela compareçam, de forma natural, elementos representativos da vida, da sociedade, da humanidade em movimento. Dessa circunstância depende a profundidade da adesão leitora, que decorre muito da verosimilhança do contexto, da ilusão de vida verdadeira em cada cena narrada, da concomitância do tempo narrativo com o tempo da própria existência física. Num grande romance percebe-se o tempo a passar, a vida a acontecer.
Os críticos de Dinis acusam-no de haver criado narrativas demasiado simples, na forma e no conteúdo. E a isto acrescentam que os romances são retoricamente ingénuos, porque – imagine-se – há neles a percepção de que os “bons” são sempre premiados e os “maus”, ou os “menos bons”, são sempre castigados.
Eu gosto de pensar que a principal característica de Júlio Dinis é a de, à maneira dos melhores clássicos, ele ter percebido que um romance pertence ao modo narrativo, logo que a eficácia e brilho da obra dependem, sobretudo, da arte de bem contar. A escrita serve (humildemente) a história – ou, no máximo, é consubstancial à história.
Em boa parte, é essa humildade do escritor que torna amável a literatura dinisiana. “Amável” significa aqui, antes de mais, literatura susceptível de ser amada.
Quanto ao resto (isso de a realidade não ser assim tão simples e bela como a que encontramos nas narrativas dinisianas), busco a resposta na saudosa – e genial – Maria Lúcia Lepecky, citando-a de cor: que culpa tem Júlio Dinis que a História, ao contrário das histórias do autor d’As Pupilas, se esqueça de acontecer?

Ribeira de Pena, 21 de Dezembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho

[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 25-12-2015.]

sábado, 19 de dezembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (19)


O duro desejo de durar


Há pouco tempo, um médico alertou-me, com cara de poucos amigos, para a iminência de algum ataque cardíaco. Mal me olhava, tão escandalosos lhe pareciam os valores da diabetes e do colesterol que lia nos exames. Rematou o aviso com medicação, ordem para novo estilo de vida e requisição de novas análises. Saí do consultório assustado como um empregado bancário que, por pouco, houvesse sobrevivido a um assalto.
Eu dou-me bem com a mortalidade, enquanto conceito, mas custa-me muito a concretude da morte propriamente dita. Com insuspeitada autodisciplina, abracei uma cínica dieta que, entre outras violências, compreendeu a abolição dos doces e sumos, a redução do número de pães consumidos por dia, a limitação dos hidratos de carbono, o respeito espartano pelos horários das refeições. Mais: obriguei-me a um exercício físico regular e quase diário, apesar do frio e da chuva frequentes neste cantinho transmontano onde resido. O sumário de tudo quanto aqui digo é simples: não quero (ainda) morrer.
Deu-se entretanto o caso de uma moça muito jovem, que conheci desde a sua infância, ter sido assassinada por um cancro. E de um rapaz de 18 anos, que ainda há pouco se cruzava comigo nos corredores da escola, se ter suicidado por (disseram-me) desgosto de amor. E de haver esta epidemia de os pais e as mães dos meus contemporâneos estarem a partir. O mais paradoxal é, em cada funeral, ouvirmos o consabido estribilho: “É a vida.”
Um grande poeta romeno, Paul Célan, escreveu um magnífico verso sobre esta assombração que me acompanha, desde a meninice, perante o mistério e a indignidade da morte: “le dur désir de durer” (o duro desejo de durar). No embalo desta aliteração, ecoa a contradição milenar da condição humana – permanentemente projectada sobre o futuro, mas consciente da sua inevitável finitude.
Há dias, vi um episódio muito interessante de “Odisseia no espaço”, com apresentação do físico Neil deGrasse Tyson, sobre a história de Gilgamesh, rei da Suméria (quase 3.000 anos AC). O narrador descrevia, com pormenor e imaginação, as conquistas desse herói mais ou menos lendário, sublinhando a sua demencial pulsão: descobrir o segredo da imortalidade. Acontece que a história desta personagem foi descoberta num épico mesopotâmico, escrito em tábuas com caracteres cuneiformes, exactamente com o título de Epopeia de Gilgamesh. Isto é, a imortalidade – ou algo parecido – talvez estivesse (talvez esteja) na palavra escrita.
Já não é mau. 

Ribeira de Pena, 12 de Dezembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 15-12-2015.]

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Forever Music


 
Lembro-me do gesto antes da música –

O rapaz retirando o vinil do plástico

A conduzir a agulha do gira-discos

(Delicadamente)

Lembro-me de mim –

O rapaz sentando-se no sofá antigo

A letra da canção sobre os joelhos

O silêncio antes da música.

Lembro-me do disco rodando –

O céu saindo pelas colunas do som

A voz rouca dos versos, a guitarra eléctrica

O ritmo da vida por um baterista louco.

Lembro-me da música –

Esse rio deslizando para tão longe dali

Essa ilusão de eternidade feliz

Até ao inevitável mutismo

(Porquê?)

Da foz.

Nada me interessa senão recordar

(Delicadamente)

A música, ou aquilo de colocar a agulha

Sobre a faixa preferida do álbum

E de novo saborear a eternidade

Às voltas como se não houvesse

Fim.

 
Arco, 10 de Dezembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.audiopt.net.]

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (17)


5, talvez 6 sentidos

Almeida Garrett, que decorosamente convertia a sua libido em versos com flores e filosofia, versou o tema dos cinco sentidos aí por 1853. Num poema de Folhas Caídas, percebemos que a experiência sensorial do sujeito poético é fatal ponto de partida para a evocação e a presentificação da mulher amada.
Lembrei-me deste fenómeno ao passar pela porta de uma casa transmontana, logo pela manhã. Cheirava a café com leite. De imediato, saiu um jacto do meu coração em direcção à infância: a minha Mãe na cozinha preparando o pequeno-almoço, assim o odor quente de leite e café invadindo os quartos como uma carícia. Viaja-se pelo cheiro, portanto. Alguns perfumes devolvem-nos namoros que eram para ser eternos, ou então simples enlevos secretos e, não vos digo mais nada, proibidos. (Tive uma colega que, ao cheiro da bosta pecuária, se lembrava do querido lar paterno, fenómeno decorrente de a família criar gado e produzir leite para venda.)
Acontece-me o mesmo com alguns sons: a chuva no telhado que, coitadinha, se veio a tornar clichê de maus escribas, é quase sempre uma querida música com refrão familiar. E há algumas canções que logo nos tiram a poeira da idade e do cinismo, tornando-nos por segundos novamente românticos.
Também se viaja pelo paladar, claro. Já me sucedeu voltar à amada praia de Mira, ao tempo em que (como diria o senhor Pessoa) ninguém estava morto, apenas pela degustação de caranguejos ou de carapaus fritos.
E o tacto? A minha Mãe, que nunca leu Garrett, guardou certo cobertor que o mais novo da prole exigia, quando muito infante, para dormir. Porque, sabei, a textura do têxtil é hoje passaporte mágico para aquele tempo da absoluta inocência e felicidade.
Sobre a visão, nem valeria a pena escrever, tão desmesurado é o poder de, pelo olhar, sabermos quase tudo dos ganhos e das perdas da nossa existência: o meu sobrinho-neto gritando à roda da mesa natalina e a cadeira do meu amigo Conceição muito vazia do seu bigode trocista.
Um, dois, três, quatro, cinco sentidos. Não rima, mas é mesmo, creio eu, a conta que Deus fez. Há quem fale de um sexto sentido, normalmente associado às mulheres. Talvez seja verdade. A senhora D. Lurdes, uma querida vizinha nossa, deu conta às filhas, há um ano, de ter sentido, em certa (exacta) hora do dia, uma angústia nunca antes experimentada: era – disse - decerto o marido, internado no hospital por essa altura, a despedir-se do mundo. E, com efeito, o senhor Luís Monteiro, nesse instante, separara-se de nós para sempre.

Coimbra, 30 de Novembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho

[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 04-12-2015.]

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Rua Augusta, n.º 25






Lembro-me vagamente desse tempo –
Tu inexistindo-me uns anitos
Ainda antes de me fazeres falta.
Há até testemunhas desse calendário,
Fotografias juvenis em que não estás
E por vezes ocorre-me que é engano.
Como poderia não haver o teu sorriso
A tua voz a tua pele o cheiro a ti
As tuas mãos consubstanciais às minhas?
É tão bom ser para sempre o nosso presente!
Partilhamos filha casas livros amigos contas
Mortes nascimentos medos sonhos muito Mar.
Digo: amo-te.
Tu já sabes (eu sei que sabes);
Mas não exactamente quanto,
Meu amor.
Olha que eu te amo mais do que algum dia saberás!

Ribeira de Pena, 03 de Dezembro de 2015, no 32.º aniversário do meu casamento com a MP.
Joaquim Jorge Carvalho

[As fotos - enviadas pela VL por Email sem que a MP soubesse - são de há 32 anos. Portanto, de ainda agora.]

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (16)

CR7, ou o cronista outra vez criança

A paixão pelo futebol é, em mim, uma das mais puras e perenes marcas da infância. Não tenho vergonha deste amor pueril e deliberadamente me sujeito à alienação semanal que ele compreende: a minha vida presa por uma bola na trave, uma defesa impossível, certo drible corrido que, por instantes, vale mais que literatura, emprego, saúde, vizinhança.
Ao longo de anos, coleccionei ídolos, sobretudo os de leão ao peito. O clubismo, como eu o vejo, é sempre uma história de amor – chega-nos dos pais, dos irmãos, de um primo divertido, de um amigo. Às vezes, também da própria dinâmica de vitória que, em certos ciclos (anos, décadas), alguns emblemas protagonizam e mediaticamente celebram.
Eu sou do Yazalde, do Damas, do Jordão, do Salif Keita, do Manoel, do Futre, do Figo, do Cristiano Ronaldo e, mais recentemente, do Bryan Ruiz. Tendo a desculpar, com preconceito sanguíneo, as falhas dos meus eleitos, desviando culpas para o estado do terreno, a brutidade dos adversários, a inépcia do treinador, a má vontade dos colegas, a venalidade do árbitro. Tudo isto há-de soar a criancice, mas (já vo-lo disse) é uma criança que sobre isto perora.
Tem-me doído muito, na presente época futebolística, o brilho mais baço do Cristiano Ronaldo. Sou seu feroz adorador desde há uns bons doze anos. Há nele tudo o que se quer de um grande jogador: capacidade físico-atlética, técnica, talento, ambição, eficácia. Marca com o pé esquerdo e o direito, marca de cabeça, desmarca-se, cruza e dribla de forma perfeita, é veloz como um felino na selva, eleva-se com a majestade de uma ave maior.
Os detractores, normalmente, diminuem-no face a Messi com um argumento escandaloso: o argentino é – dizem – um talento natural; a capacidade de Ronaldo decorre, ao invés (?), de muito treino, logo – dizem – é artificial. Como se a busca (esforçada, sistemática, persistente) da perfeição fosse, afinal, sinal de fraqueza ou demérito!
Eu, que admiro Messi porque gosto de grandes jogadores, sou do Ronaldo. E não quero saber se ele é vaidoso, arrogante, egocêntrico, infiel às namoradas. Nada tenho que ver com tal. Fernando Pessoa, o meu CR7 da poesia, também se dedicava ao álcool e à astrologia, e isso é, para mim, pouco mais que um folclore menor, quiçá irrelevante.
Dou graças, sim, por ser contemporâneo de Cristiano Ronaldo, o divino número 7 da selecção portuguesa.

Ribeira de Pena, 24 de Novembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho

[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 27-11-2015.]