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Número de Ondas

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A gramática e a querida literatura




1. Uma excelente aluna queixava-se, no final do ano lectivo passado, do facto de, nas aulas de Português (esclareço: nas minhas aulas de Português), haver pouco tempo para ler. Explico melhor (explicou-me ela melhor): apetecia-lhe que, nas aulas de Português, houvesse mais tempo para ler. Mais tempo para saborear a magia dos livros, das histórias, das palavras bailarinas ou acrobatas.
2. Eis, da minha parte, uma confissão triste: ela tinha razão. Ela tem razão. Culpo a extensão dos programas. E culpo, em particular, a obscena quantidade de conteúdos gramaticais a ensinar ou a consolidar.
3. Alguns amáveis teóricos defendem a possibilidade de se leccionar gramática nos (suaves e breves) intervalos da leitura e da escrita. Sugiro a quem, de boa -fé, queira estudar o assunto o favor de espreitar os programas de Português do 5.º. do 6.º, do 7.º, do 8.º e do 9.º ano. Verificarão facilmente que não é possível cumprir os programas, em matéria de gramática, sem efectivamente limitar o exercício da leitura, da interpretação, da discussão dos textos e da escrita a partir dos textos lidos - com óbvio dano da qualidade e do prazer das aulas de Português. Eu sei disso porque amo a literatura. E sei-o do ponto de vista do aluno (que também fui e, em boa verdade, continuo sendo) e, naturalmente, do ponto de vista do docente.
4. Uma real reforma no ensino do Português, que realmente quisesse elevar as competências dos alunos na comunicação oral e escrita, passaria pela supressão tout court, no primeiro e segundo ciclos, do ensino da gramática (na sua dimensão, sublinho, de conhecimento explícito da língua). No terceiro ciclo, o trabalho no território do conhecimento explícito da língua deveria limitar-se a aspectos verdadeiramente básicos. Só no ensino secundário se justificaria o ensino da gramática com a profundidade e a complexidade a que, no presente, se obrigam os alunos do terceiro ciclo. Mais: neste caso, os alunos do ensino secundário (em particular, os de humanidades) deveriam ter, além de Português, uma disciplina específica e exclusivamente ocupada da gramática – a que poderíamos, talvez, chamar “Gramática da Língua Portuguesa”.
5. Sei que o que digo não coincide com a vontade oficial da contemporaneidade. Mas eu colho da minha velhice esta possibilidade da livre expressão, sem medo e sem falsos pudores. Digo o que penso.

Cabeceiras de Basto, 18 de Outubro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www. neverendingstory.com.]

2 comentários:

Paulo Pinto disse...

Essa primazia do conhecimento explícito da língua nos programas de Português do básico estende-se também à aprendizagem das línguas estrangeiras, e assassina (ou pelo menos prejudica) o prazer de aprender, o desenvolvimento da sensibilidade estética e literária, e as próprias competências comunicativas. Um aluno aplicado de Inglês ou Francês fica a saber as regras todas sem ser, muitas vezes, capaz de dizer uma frase. Recentemente, a minha mulher foi a um encontro do programa Comenius na Bulgária, onde estavam alunos de 8 países. As alunas que ela levava eram das melhores: uma que sempre tirava 5 a Inglês, outra nunca menos de 4. Sobre elas, especialmente sobre a que tirava 4, comentavam os alunos dos outros países (gregos, turcos, croatas, italianos, etc.) que ela nada sabia dizer e pouco entendia, mesmo das coisas mais simples, pois não tinha vocabulário.

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Concordo com tudo quanto dizes. Tenho, aliás, enquanto professor e coordenador de departamento, lutado por que, no limite estreito da nossa autonomia pessoal ou grupal, estas evidências que refiro-referes sejam tidas, realmente, em conta.
Abraço!