Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Tele-Visões


 
No último fim-de-semana (antes, durante e depois das eleições), vi muita televisão. A minha memória, que é feita de amor e (menos frequentemente) de inteligência, reteve quatro programas. Recordo-os aqui, brevemente.

1.           No canal Syfy, um documentário mostra como seria a Terra se, subitamente, deixasse de haver nela gente. Isto é, pessoas. Isto é, humanidade. O exercício é, por natureza, impossível: a especulação habitante do condicional (“como seria” a Terra, disse eu) implica a presença do olhar humano. Mas adiante. O que me importa sublinhar, no devir assombrado daquele documentário, é a confirmadíssima pequenez e irrelevância da civilização humana, à luz magna do Tempo maiúsculo, essa eternidade feita de milhares-milhões de anos. Segundo os cálculos dos académicos envolvidos no argumentário do filme, em menos de cem mil anos (um piscar de olhos, na biografia do universo), qualquer vestígio da nossa presença teria desaparecido. E estava eu preocupado com o método de Hondt aplicado à minha Junta de Freguesia!

2.           Na TV Record, há um programa intitulado, salvo erro, “O Caldeirão do Huk”. Uma das rubricas compreende a transformação da habitação de determinada família, normalmente muito pobre, que a produção elege entre (adivinho) milhares de pedidos. No domingo, dia 29 de Setembro, o milagre tocou à porta de habitantes de Pará de Minas, no interior do Brasil. Vi uma mão de trinta e dois anos, viúva, com sete filhos a cargo. Filhos, recordo-me, muito bonitos e com idades entre um e quinze anos. O que me comoveu, naquela pobreza quase obscena, foi o amor (corrijo: o AMOR) que manifestamente existia entre mãe e filharada. Pormenor: era uma família que, por razões de penúria financeira, nunca se aviara num supermercado. A mãe contava a história do último réveillon (foi assim que ela disse: réveillon) do agregado, na casa muito pobre daquele bairro muito pobre. Só havia, para a ceia, feijão e arroz. E, a meio da cozedura, tinha-se acabado o gás do fogão. Um dos filhos (talvez com 12 anos) revoltou-se e chorou no ombro da progenitora. Esta prometeu-lhe, então, sem saber por que razão o fazia, que no ano seguinte tudo estaria melhor. Também explicou ao repórter que, no início de cada mês, quando recebia o magro salário, levava um dos filhos a almoçar numa lanchonete ou restaurante da zona, de modo a que a descendência tivesse contacto com lugares mais bonitos, onde se comia com garfo e faca. Porquê? “Porque a cultura é muito importante”, explicou a mãe. Eu chorei durante a reportagem, confesso. E, quando os vizinhos de favela gritavam, felizes, à chegada dos camiões para obras de transformação da casa, “Ela merce! Ela merece!”, também eu o gritei interiormente: “Ela merece!” Ela, quero dizer, a heroína exemplar daquela vida, a minha irmã brasileira, minha querida irmã do planeta Terra.

3.           Num dos canais de notícias, vi uma reportagem sobre a vida nas prisões dos Estados Unidos. Entre tantos acidentes humanos, havia aquele rapaz de dezanove anos, à espera de ser condenado a prisão perpétua, que confessava ter assassinado um homem devido a uma dívida de vinte dólares. Explicava, cândido: “Não me queria pagar. Por isso, matei aquele filho da puta!” O repórter quis saber o que sentia o preso, perante a perspectiva de uma vida inteira na prisão. O entrevistado levou alguns segundos a escolher a resposta, depois disse: “Alívio.” Relief, man! No desenvolvimento, entre sorrisos tristes, diz que nunca conheceu o pai, que a mãe (alcoólica, drogada e ocasionalmente prostituta) raramente estava em casa. Que o irmão mais velho andava sempre a fugir, quer da polícia, quer dos outros gangues. Que a irmã era prostituta desde pequena e que desprezava a família. A prisão – repetia – era um alívio. Eu percebo. Isto é, dói-me que a prisão, qualquer prisão, represente um alívio para este preso, para qualquer preso, mas percebo. Como não?

 

Arco de Baúlhe, intervalo d’almoço (antes de voltar à poesia do Daniel Abrunheiro), 04 de Outubro de 20132.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.mises.org.br.]

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