No
último fim-de-semana (antes, durante e depois das eleições), vi muita
televisão. A minha memória, que é feita de amor e (menos frequentemente) de inteligência,
reteve quatro programas. Recordo-os aqui, brevemente.
1.
No
canal Syfy, um documentário mostra como seria a Terra se, subitamente, deixasse
de haver nela gente. Isto é, pessoas. Isto é, humanidade. O exercício é, por
natureza, impossível: a especulação habitante do condicional (“como seria” a Terra, disse eu) implica a
presença do olhar humano. Mas adiante. O que me importa sublinhar, no devir assombrado
daquele documentário, é a confirmadíssima pequenez e irrelevância da
civilização humana, à luz magna do Tempo maiúsculo, essa eternidade feita de
milhares-milhões de anos. Segundo os cálculos dos académicos envolvidos no
argumentário do filme, em menos de cem mil anos (um piscar de olhos, na
biografia do universo), qualquer vestígio da nossa presença teria desaparecido.
E estava eu preocupado com o método de Hondt aplicado à minha Junta de Freguesia!
2.
Na
TV Record, há um programa intitulado, salvo erro, “O Caldeirão do Huk”. Uma das
rubricas compreende a transformação da habitação de determinada família,
normalmente muito pobre, que a produção elege entre (adivinho) milhares de
pedidos. No domingo, dia 29 de Setembro, o milagre tocou à porta de habitantes
de Pará de Minas, no interior do Brasil. Vi uma mão de trinta e dois anos,
viúva, com sete filhos a cargo. Filhos, recordo-me, muito bonitos e com idades
entre um e quinze anos. O que me comoveu, naquela pobreza quase obscena, foi o
amor (corrijo: o AMOR) que manifestamente existia entre mãe e filharada. Pormenor:
era uma família que, por razões de penúria financeira, nunca se aviara num
supermercado. A mãe contava a história do último réveillon (foi assim que ela disse: réveillon) do agregado, na casa muito pobre daquele bairro muito
pobre. Só havia, para a ceia, feijão e arroz. E, a meio da cozedura, tinha-se
acabado o gás do fogão. Um dos filhos (talvez com 12 anos) revoltou-se e chorou
no ombro da progenitora. Esta prometeu-lhe, então, sem saber por que razão o fazia,
que no ano seguinte tudo estaria melhor. Também explicou ao repórter que, no
início de cada mês, quando recebia o magro salário, levava um dos filhos a
almoçar numa lanchonete ou restaurante da zona, de modo a que a descendência
tivesse contacto com lugares mais bonitos, onde se comia com garfo e faca.
Porquê? “Porque a cultura é muito importante”, explicou a mãe. Eu chorei
durante a reportagem, confesso. E, quando os vizinhos de favela gritavam, felizes,
à chegada dos camiões para obras de transformação da casa, “Ela merce! Ela merece!”,
também eu o gritei interiormente: “Ela merece!” Ela, quero dizer, a heroína exemplar
daquela vida, a minha irmã brasileira, minha querida irmã do planeta Terra.
3.
Num
dos canais de notícias, vi uma reportagem sobre a vida nas prisões dos Estados
Unidos. Entre tantos acidentes humanos, havia aquele rapaz de dezanove anos, à
espera de ser condenado a prisão perpétua, que confessava ter assassinado um
homem devido a uma dívida de vinte dólares. Explicava, cândido: “Não me queria
pagar. Por isso, matei aquele filho da puta!” O repórter quis saber o que
sentia o preso, perante a perspectiva de uma vida inteira na prisão. O entrevistado
levou alguns segundos a escolher a resposta, depois disse: “Alívio.” Relief, man! No desenvolvimento, entre
sorrisos tristes, diz que nunca conheceu o pai, que a mãe (alcoólica, drogada e
ocasionalmente prostituta) raramente estava em casa. Que o irmão mais velho andava
sempre a fugir, quer da polícia, quer dos outros gangues. Que a irmã era prostituta
desde pequena e que desprezava a família. A prisão – repetia – era um alívio.
Eu percebo. Isto é, dói-me que a prisão, qualquer prisão, represente um alívio
para este preso, para qualquer preso, mas percebo. Como não?
Arco de Baúlhe, intervalo d’almoço
(antes de voltar à poesia do Daniel Abrunheiro), 04 de Outubro de 20132.
Joaquim Jorge Carvalho[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.mises.org.br.]
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