Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quinta-feira, 12 de julho de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (144)



Condição de gladiador

A lógica das competições a eliminar – como é o caso dos campeonatos da Europa e do Mundo, na modalidade sagrada do futebol – compreende um pressuposto cruel: no final da fase de grupos, de 32 candidatos restam 16; depois, nos oitavos de final, de 16 restam 8; etc. Na final da competição, enfrentam-se duas equipas carregadas de sonhos, de pulsão épica, conscientes do cariz definitivo daquela oportunidade voadora. Sai-se dali herói & imortal, ou em versão morto-vivo, tresandando a falhanço, quiçá sujeito à piedadezinha condescendente ou a coisa pior. 
Depois de sofrer a derrota portuguesa às mãos do Uruguai e depois de assistir à eliminação da Espanha, da Dinamarca, do México e do Japão, confirmei que o reverso da glória de uns é a desmesurada tristeza de outros. Pelo meio, felizmente, há gestos de fair play que nos consolam e educam. Mas a minha simpatia (Europeu de 2016 à parte) vai invariavelmente para os que perdem, i.e. aqueles que experimentam, em determinados momentos, o fel da vida. 
Bem sei que o futebol é apenas um jogo. Bem sei que as derrotas e as vitórias, ali, são realidades de somenos quando comparadas com as verdadeiras tragédias – doenças, guerras, falecimentos, exploração, violência, pobreza, fome. Creio, contudo, que a natureza das lágrimas dos jogadores mexicanos, de uma formosa dinamarquesa ou de um menino espanhol, reagindo à derrota, é a mesma que verteriam noutras circunstâncias, por exemplo na leitura de um romance, no visionamento de um filme, no acto de escutar uma canção, num reencontro familiar, num funeral, durante uma epifania à mesa do Café. Porque somos, enquanto humanos, frágeis e magníficas vítimas da circunstância de pensar e de sentir. 
A memória, via cinema, traz-me os gladiadores que, no tempo dos Romanos, divertiam os espectadores com os seus combates mortais. Diziam, ao entrar para a arena: Ave Caesar, morituri te salutant (traduzo livremente: “Os que vão morrer, ó César, saúdam-te”). Isto é, a morte (nesse dia ou mais tarde) era uma premissa inerente à sua própria condição gladiadora. Fazia – e faz – parte do jogo. Em princípio, note-se, nenhuma equipa joga para perder. Nenhum jogador se demite de sonhar. Nenhum homem entra na competição sem a devida dose de ilusões. Mas o preço a pagar, mais cedo ou mais tarde, para os que perdem, é fatalmente alto. E sabemos bem como as desilusões são atropelamentos graves, que obrigam a recuperações quase sempre lentas e dolorosas. 
Não estou só a falar do Mundial da Rússia. Estou a falar da Vida. Dói-me saber que o Pepe, o Fonte, o Bruno Alves, o Quaresma e o Cristiano Ronaldo já são trintões (como, aliás, o Messi, o Iniesta, o Modric) – e que o seu fulgor tenderá a apagar-se em breve. Quem viver verá, talvez, como os deuses de hoje passarão de apolíneos gladiadores a obesos calvos, sujeitos ao reumatismo e às saudades. 
O futebol continua, claro. E, claro, a vida continua. Novos craques estão a despontar, há novas competições na calha, o presente é já o futuro a mostrar-se. Mestre João, meu tão saudoso sogro, fazia questão de, em qualquer festa, pôr toda a gente a cantar uma quadra que sempre me impressionou: “Primavera das flores / Como ela não há mais! / Ai, Primavera vai e volta sempre, / Ai, Mocidade já não volta mais!” Tem sido essa, na verdade, a melodia que preside a tudo quanto vejo-sinto-escrevo. 

Nota extra: Esta crónica foi a útima que concebi para O Ribatejo, em versão de papel. O timoneiro do semanário informou-me desse iminente fim do nosso jornal na sua dimensão tradicional, corpórea, natural. O último número saiu mesmo a 12-07-2018. Custa-me esse ocaso; conforta-me a ideia de que sobreviverá digitalmente. Não gosto destes tempos, porém. Temo que o papel da imprensa venha a degradar-se com o fim da imprensa de papel. Abraço solidário para todos quantos têm feito e lido o jornal. Gratidão reiterada ao Daniel Abrunheiro e ao Joaquim Duarte, que me trouxeram para este regaço digno e livre. 

Coimbra, 02 de Julho de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem da última capa d’O Ribatejo em papel foi colhida, com a devida vénia, no sítio do jornal. A foto de Cristiano Ronaldo foi colhida, com a devida vénia, em https://www.sapo-pt-]

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