Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

segunda-feira, 28 de maio de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (138)


Dizer tudo 

Dei a ler aos alunos do 7.º ano, no início do estudo do texto poético, um enunciado de Alice Vieira intitulado “O que é a Poesia?” (homónimo de um ensaio de J. Evans Pritchard, que o filme Clube dos Poetas Mortos, de Peter Weir, arrasa espectacularmente). No texto, de forma pedagógica, a escritora portuguesa defende que a poesia serve para os seres humanos exprimirem por palavras as mais vívidas emoções e os mais profundos sentimentos que neles habitam; lembra que cabe no poema qualquer pedacinho de realidade, de sonho, de imaginação; sublinha que as palavras são tão importantes quanto nelas haja a humanidade de quem escreve ou de quem lê/ouve. 
Ao longo de uma semana, nós lemos poemas-histórias, poemas-desabafos, poemas-filosofia e poemas-brincadeiras (cheios de musical rima, de cómicas aliterações ou assonâncias, de inesperados trocadilhos). À volta dos versos, tecemos interpretações e discutimos versos, vidas, Vida. Seguiram-se algumas horas de oficina de escrita, honestamente precedidas de um aviso: o professor não quer fazer dos seus alunos, por milagre ou ordem, poetas; quer tão-só ajudá-los a melhorar a sua condição de leitores. Desafiei-os a recordar alguns momentos importantes das suas biografias, felizes ou nem por isso: o melhor amigo da escola primária que viajou para a Alemanha com os pais e que o R. não mais voltou a ver; o dia em que o avô da I. regressou do hospital, alegadamente curado do mal que o queria matar; a cadelinha que desapareceu para sempre da casa de M.; o pai da F., que perdeu a batalha com a doença prolongada; o desejo infinito que há no V. de viajar por todo o mundo; as alegrias e as dores da paixão da S.; etc
Pedi-lhes, a seguir, que enunciassem, para cada situação, as emoções e os sentimentos vividos no mais profundo recanto dos seus corações sinceros. E, finalmente, propus-lhes que dissessem-escrevessem isso, de forma tanto quanto possível original e cuidada. Na aula, rascunhámos um exemplo, à roda da paixão da S. (que todos conheciam, aliás, à excepção do docente). Sem surpresa, o trabalho de casa consistiu na elaboração de poemas – com um mínimo de 4 versos e um máximo de 20, rimando ou não, de preferência usando alguns dos recursos expressivos trabalhados nas aulas anteriores. 
No bloco lectivo da última 6ª feira, a F. trouxe-nos as saudades do Pai-guerreiro, contador de anedotas e sempre farto de hospitais, de quem se lembrava todos os dias, apesar de mortalmente ausente; a I. recordou a cadeira vazia de onde, quando vivo, o avô iluminava a cozinha e a casa toda, até Novembro passado; o V. confidenciou-nos a sua obsessão por viagens, exprimindo um amor absoluto pelas que já fez e por tantas que quer fazer no resto da sua vida; a M. contou-nos a esperança que mantém no regresso da Daisy, a cadelinha mais divertida do universo; a S. garantiu, em 4 versos, que o amor é estúpido, doentio e maravilhoso; o J. revelou-nos o profundo prazer que sente por pizzas e gelados; e a B. (a maior surpresa da sessão, pois parecera, nas aulas anteriores, sempre indiferente aos encantos da lírica) agradeceu formosamente à Mãe por estar sempre presente e sempre pronta. 
O que é a Poesia? Eu já tentei explicar isso em verso, mas de forma muito incompleta, claro, como é da natureza de cada verdade dita. Nesta crónica, atrevo-me a dizer que é o sangue e a música da nossa condição. Isto é: um fio sincero e frágil da vida sendo dita enquanto acontece. Isto é: um canto gritado ou murmurado contra o nada iminente. Isto é: tudo. 

Coimbra, 20 de Maio de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem (do filme O Carteiro de Pablo Neruda) foi colhida, com a devida vénia, em http:www.seisetreze.blogspot.pt.]

2 comentários:

Anónimo disse...

Sem comentários?...
Só se for por ser tão elucidativa e simples a explicação do que é a poesia.
Maravilhoso!
RGC

Joaquim Jorge Carvalho disse...

RGC, é um prazer ser teu vizinho & cúmplice neste delicado bairro da Poesia. Bj. JJC