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Número de Ondas

segunda-feira, 21 de maio de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (137)


A doença do esquecimento

O Jornal de Notícias (JN) do dia 11 de Maio dava conta, numa das suas páginas de informação local, da dramática saga que envolveu certa idosa, no centro do País. A senhora, que sofre de Alzheimer, esteve desaparecida durante vários dias, vindo a ser encontrada a uns dez quilómetros de casa, contra probabilidades e expectativas, bem viva, apesar de desorientada, sem a sua prótese dentária e com algumas escoriações no rosto. 
O mesmo JN, no mesmo dia 11 de Maio, num espaço de evocação cultural, lembrava a figura do general Sousa Brandão, um republicano do século XIX, natural de Santa Maria da Feira. Este engenheiro, segundo aprendi, assumiu particular papel no incremento do transporte ferroviário em Portugal. O artigo sublinhava o facto de, no concelho natal deste vulto, quase ninguém saber fosse o que fosse sobre a sua biografia essencial e de tão-pouco a autarquia o celebrar daquela forma convencional que costuma usar-se: nem uma rua com o seu nome, ou um edifício, ou uma escola, ou uma associação, ou um prémio literário-académico-jornalístico. Nada.
Obviamente, as duas notícias cruzam-se com a ideia de Alzheimer: no primeiro caso, na dimensão literal do fenómeno; no segundo caso, num sentido mais simbólico, mas não menos físico. Para ataque à primeira situação, a ciência parece ainda movimentar-se pelo território geralmente incipiente das hipóteses e da experimentação. Confiemos, entretanto, na generosidade, inteligência e teimosia dos investigadores. O ataque à segunda situação tem respostas – digo eu – mais óbvias, embora igualmente dependentes de um trabalho generoso, inteligente e teimoso, consubstanciável num esforço de informação consistente e sustentada, bem como de respeito pela História e de celebração & estudo dos que, no passado, através do exemplo, criaram beleza, progresso e justiça, oferecendo a contemporâneos e vindouros um País melhor. Camões, nesse seu gigantesco projecto literário chamado Os Lusíadas, quis cantar “aqueles que por obras valerosas / se vão da lei da Morte libertando”. A ignorância, a ingratidão, a preguiça e, às vezes, a indiferença são uma espécie de vírus cultural e histórico. O desprezo (voluntário ou involuntário) das gentes da Feira por Sousa Brandão, vista a coisa a partir desta crónica, são apenas um símbolo do Alzheimer nacional que, em forma de silêncio, recusa o tributo devido a escritores-filósofos-políticos-filantropos-militares-juristas-desportistas-etc
Ora, um Povo que não saiba (e quiçá nem queira saber) dos seus heróis é uma velhinha andando perdidamente por montes e vales, sem rumo nem memória, à procura de nada. 

Vila Real, 12 de Maio de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 17-05-2018. A imagem (retrato de Sousa Bandão) foi colhida, com a devida vénia, em https://pt.wikipedia.org.]

2 comentários:

Paulo Pinto disse...

Eis uma história pessoal que vem a propósito. A minha primeira escola foi em Sernancelhe, concelho de onde era natural Aquilino Ribeiro. O nome dele era referido e toda a gente sabia que era filho da terra (de Tabosa do Carregal, para ser mais preciso). O mesmo não acontecia com outro ilustre conterrâneo: o padre jesuíta João Rodrigues. Foi um missionário que, nos finais do século XVI e inícios do XVII, se dedicou à evangelização do Japão, onde viveu durante 30 anos. Foi tradutor do próprio governante do país, o poderoso Toyotomi Hideyoshi (que tentou converter ao catolicismo, sem êxito, mas de quem conseguiu uma política de tolerância face aos Portugueses e á religião católica), colaborou no primeiro dicionário de Japonês, escreveu um livro sobre o idioma nipónico e as suas variantes, e traduziu para Japonês a partir de textos ocidentais e inclusive chineses, pois viveu em Macau e em Goa e dominava diversos idiomas (espanhol, latim, italiano, mandarim, tâmil, japonês...) e sistemas de escrita. Foi, portanto, uma figura de proa da presença portuguesa no Oriente, quase ao nível de S. Francisco Xavier mas que, ao contrário deste, era português de nascimento.
Ora, descobri casualmente este jesuíta lendo um livro sobre a presença portuguesa no Japão durante as férias a seguir ao ano que passei em Sernancelhe. Falei, entusiasmado, sobre o assunto com um amigo que lá fiz e que trabalhava como técnico na Câmara Municipal. Ele nunca tinha ouvido falar, mas prometeu que falaria com o presidente da Câmara e outras pessoas. Aparentemente, segundo me contou depois, apenas o pároco tinha ouvido falar de João Rodrigues e havia uma monografia que referia o seu nome de passagem. Não havia rua, busto ou qualquer outra menção pública ao nome do homem. Hoje, o agrupamento de escolas tem o nome de João Rodrigues. Não sei se dei involuntariamente algum contributo para isso; penso que não, pois foi só vários anos depois, já com outro presidente (e outro partido) na Câmara, que a adoção do nome do patrono foi feita. Mas serve para ilustrar como, mesmo num concelho pequenino do interior profundo, onde não abundam as figuras ilustres de referência, um vulto histórico desta importância pode passar ignorado por quase todos durante séculos. Portugal está, aliás, cheio destes esquecimentos, o que mostra o fosso que sempre existiu entre o saber erudito e o saber da gente comum. Vá lá que há sempre quem vá sacudir o pó das velhas arcas e dos arquivos para fazer ressuscitar quem merece ser lembrado.

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Caro Paulo, desculpa o atraso da publicação do comentário. Desconfio de que foste mesmo tu a causa primeira do resgate desse nome. Abraço! JJC