Contradanças
Os gregos têm duas
palavras para o conceito de tempo (a grafia é opção minha): Kairos e Kronos – esta para significar a física passagem de segundos,
minutos, horas, dias meses, anos; aquela para dizer a vida verdadeiramente
importante, os instantes que não mais esquecemos, nos marcam e nos fazem, pelo
sofrimento, pelo espanto, pela alegria, crescer.
Os anglófonos usam
uma expressão muito interessante para o tempo kairónico: quality time [tempo de qualidade]. Num intervalo, pequenino embora,
da sua rotina obrigatória, pais jogam à bola com os filhos na rua, ou assistem aos
treinos de futebol da prole, debatendo jogadas, medindo a exigência dos
treinadores, celebrando a beleza das camisolas novas. É o tempo da felicidade,
aquele, como melhor hão-de tragicamente perceber todos, no futuro.
Eu, entre outras
experiências de alegria autêntica, aproveito o kairónico Verão para ler. Desde
Junho para cá, li ou reli Arte, de
Yasmina Reza, Elegia Para um Caixão Vazio,
de Baptista-Bastos, Calvin & Hobbes
(os volumes todos), de Bill Watterson, Cinco
Esquinas, de Mario Vargas Llosa, Refúgio
Perdido, de Soeiro Pereira Gomes, A
Morte é um Acto Solitário, de Ray Bradbury, O Pó da Sombra, de João de Mancelos, Terminação do Anjo, de Daniel Abrunheiro, e Contradanças – Cartas e Poemas de Camões, do deus Luís Vaz. A
aparente incoerência do conjunto decorre da minha absoluta e inegociável
liberdade para pegar num livro mais à mão e levá-lo comigo (para o carro, para
o Café, para a praia, para a casa-de-banho, para a cama). Nisto de leituras,
sou a minha própria universidade, autor e dono do meu programa de estudos,
responsável pela minha bibliografia, professor e aluno consubstancialmente.
Em Contradanças (Porto, Ed. Guerra &
Paz, 2011), revisitando Camões, dei por mim a achar que algumas das cartas do
autor de Os Lusíadas poderiam ser
respostas a uma entrevista que eu lhe estivesse fazendo durante a leitura. Seguem-se
alguns exemplos.
Eu: Vejo-o triste,
Luís Vaz. Deveria olhar à sua volta e, perante as gentes felizes que
encontrasse, alegrar-se também...
Camões (página
22): “Pouco sabe da tristeza quem, sem remédio para ela, diz ao triste que se
alegre; pois não vê que alheios contentamentos a um coração descontente, não
lhe remediando o que sente, lhe dobram o que padece.”
Eu: Mas não deixa,
mesmo quem tem problemas, de ter a sorte essencial que é viver...
Camões (página
25): “No mundo não tem boa sorte senão quem tem por boa a que tem.”
Eu: Mas esse
pessimismo, ainda que por razões verdadeiras, acaba por afastá-lo do mundo...
Camões (página
28): “Ou se há-de viver no mundo sem verdade, ou com verdade sem mundo.” [Na
verdade, só se pode bem] “saber as cousas a passar por elas, [e] há mais
diferença que a de consolar e ser consolado. Mas assim entrou o Mundo, e assim
há-de sair: muitos a repreendê-lo e poucos a emendá-lo.”
Eu: Dou por mim,
Luís Vaz, a lamentar quem não encontre na literatura o consolo e a luz que nela
pode haver.
Camões (página
54): [Por isso lhe remeto a minha escrita, a si expressamente dedicada, e] “se
lha não derem, saiba que é a culpa da viagem, na qual tudo se perde.”
Nem tudo, Luís
Vaz. Nem tudo.
Coimbra, 01 de Agosto de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi
publicada no semanário O Ribatejo,
edição de 04 de Agosto de 2016.]
1 comentário:
- "Sugestões de leitura" interessantes. Tomei nota.
- Grande entrevista!!
Boas férias.
Abraço
Nelson
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