Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

domingo, 22 de novembro de 2015

Lugar & espaço



Maria Lúcia Lepecky é uma brasileira responsável por alguns dos melhores estudos jamais feitos sobre (e pela) literatura portuguesa. Faleceu dois dias antes de eu ter defendido a minha tese de doutoramento «Acção cenas e personagens na narrativa dinisiana: as pupilas do senhor escritor». É dela uma maravilhosa definição sobre "espaço literário": por oposição a "lugar" tout court, espaço seria, na ideia da autora, um "lugar semantizado", isto é, um lugar com sentido. Este sentido decorreria, muito simplesmente, da presença de humanidade (ou, em alternativa, direi eu, da saudade da presença humana).
Dito de outro modo: os lugares assumem-se como espaços se a si se acrescentarem olhares e passos de gente, sentimentos e emoções, histórias de amor. Em boa verdade, estes lugares, quando elevados à categoria de espaços, são consubstanciais à própria humanidade.
Não é preciso ler Júlio Dinis (ou outros escritores) para entender bem o que acima se diz. Basta passar pelos lugares que fazem parte da nossa vida - lugares da infância, da adolescência, da jovem adultez, da maturidade. Mesmo que, em vez da vozearia de uma dezena de crianças, no pátio do meu prédio, haja apenas o silêncio de um rectângulo de cimento, deserto e envelhecido. Mesmo que, em vez de centenas de operários entre a Fábrica da Estaco, a Fábrica da Cerveja, a Termec, a Fábrica da Triunfo, haja simplesmente ruínas e vegetação daninha, a rua vazia de economia e de raparigas louçãs. Mesmo que, em vez do Café A Brasileira, haja um pronto-a-vestir ou uma sala desocupada dizendo "Trespassa-se". Mesmo que, em vez de árvores, a minha rua tenha hoje prédios e prédios e prédios, cimento sem cor nem frutos. Esses lugares são espaços porque eu lhes empresto o meu olhar, o meu coração. A minha memória cheia de saudades.
A aldeia que Júlio Dinis inventou (e que eu amo) é um espaço também meu, porque o sinto e percebo como lugar com humanidade. Lugar comigo dentro.

Coimbra, cidade maravilhosa, 22 de Novembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida com a devida vénia, no jornal As Beiras.]

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (15)

O direito à rotina

Por acidente de amor, coube-me em sorte desposar uma madeirense, de tal resultando que, ao longo dos anos, curti parte das férias estivais na maravilhosa cidade (antes, vila) de Machico. Quando lá, gosto de não ter automóvel a meu cuidado e de, feliz pedestre entre pedestres, acordar cedo, seguir com vagar até ao quiosque fronteiro à praia e comprar jornais, escolher uma mesa ao canto da pastelaria mais à mão para café e queijada, beber-comer-ler sem pressa, seguir depois para a praia, estender a praia sobre o calhau vulcânico, saborear o Sol, mergulhar, antes do corpo, os olhos no oceano, esperar que a mulher e a filha cheguem, conversar sobre os nadas e os tudos da vidinha e da Vida, almoçar baratamente, passear a digestão pelo largo da igreja, regressar à praia, dormir embalado pela canção das ondas e da vozearia humana que haja à volta, revisitar a frescura do mar - e enfim regressar à casa da família insular, passando de caminho, talvez, pelo hipermercado para comprar pão, fruta e peixe.
Nos primeiros tempos, o meu sogro afligia-se com esta minha rotina, temendo que se tratasse de um grande aborrecimento. Se calhava cruzar-se comigo, desculpava-se e prometia que, no fim-de-semana, se ele tivesse tempo, iríamos fazer algo de diferente (uma viagem ao norte da ilha, um almoço em certo restaurante do Caniçal, etc.). Acho que nunca verdadeiramente acreditou em mim quando lhe dizia, com absoluta sinceridade, que eu amava aquela repetição voluntária dos dias, que via como consubstanciação da querida tranquilidade e do pleno senhorio do Tempo.
Lembrei-me desse amor pela rotina logo que a televisão deu conta da carnificina ocorrida em Paris. Creio que a magnitude dessa estratégia se mede, para além do número assustador das vítimas mortais e dos feridos, também pela interrupção, quiçá para sempre, da normalidade. Ir ao Café lanchar ou comprar pão, ir ao cinema, ir à discoteca, ir a um museu, ir ao futebol, namorar num jardim público ou nos corredores de um centro comercial – tenderão a passar a situações perigosas (e, no limite da previsível paranóia, a evitar). No último domingo, suspendi a leitura do jornal, no Café, por ter visto sentar-se, em mesa próxima, certo desconhecido transportando uma mochila…
A Liberdade, como a vejo, tem essa concretude das manifestações da minha humanidade mais simples. O terrorismo é, em primeiro lugar, inimigo da Paz, naturalmente. Mas também, pobres de nós, da amável rotina que era, há tão pouco tempo, um inquestionável direito das pessoas de bem.

Ribeira de Pena, 16 de Novembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho

[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 19-11-2015.]

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (14)

Presente suspenso

 0.           Nota prévia: Não faria sentido eu incomodar os leitores com dores pessoais, excepto se a prosa significasse, tocada pelo vosso próprio entendimento, um ponto de encontro verbal e uma forma (cúmplice) de aconchego. Dessa premissa parto.

1.           É uma menina muito linda, sempre com um sorriso cheio de luz no rosto e nos gestos. Vive com a tia, porque os pais pereceram há uns anos num acidente rodoviário. Está no 9.º ano de escolaridade: é boa aluna e pratica desporto.

2.           A tia é, como eu, professora. Dá aulas a alunos do primeiro ciclo. Dadas as circunstâncias, ela vê aquela miúda tão sua filha como a que deu à luz. As duas pequenas não são, portanto, primas - são irmãs. Jogam ambas futebol de salão no Grupo Desportivo de Ribeira de Pena e estão quase a terminar o ensino secundário.

3.           Vai para a universidade e lamenta-se, sorrindo embora, por não haver emprego que lhe permita fixar-se, um dia, na vila onde cresceu e onde, com frequência, nos cruzamos.

4.           Vejo-a (salvo erro, em Vila Real), já com ar de senhora crescida, mas sempre alegre e fresca como uma brisa de Primavera. Está quase licenciada e depois fará mestrado, como é costume nos dias que correm.

5.           É mestre já, na área de Fisioterapia. Vai para o estrangeiro à procura de trabalho. Disse-me, sorrindo como aquela aluna do 9.º ano, há uns anos, que a nossa casa é onde estivermos bem.

6.           Está no hospital, no Porto, disse-me a minha mulher. Tem uma doença grave, mas “aquilo” parece estar circunscrito e, em princípio, salva-se.

7.           Morreu hoje, aos 4 de Novembro de 2015. Complicações inesperadas, disseram-me. Vou amanhã, com a minha mulher, ao funeral, ambos atordoados e indignados com o brutal cinismo do Inverno.

8.           A Carla é (para sempre) uma menina muito linda, com aquele sorriso de luz. Ainda que me chamem doido, não saio desse Presente.

 
Ribeira de Pena, 04 de Novembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 11-11-2015.]

Merceeiro local


Queria ter uma mercearia
Antiga, artesanal e a granel;
Aviar porções a olho no papel
E apontar no rol a quantia;

Ter tempo de entreter cada cliente
Saber de cada medo ou esperança;
Ser um entre pares que, no presente,
São cúmplices d'idade e vizinhança.

Queria ser merceeiro na cidade
Num bairro discreto e popular;
Ser parte da pacata sociedade.

À hora, pelas sete, de fechar
Passar no Café Realidade
E pôr-me à janela a poetar.

Cabeceiras de Basto, 11 de Novembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.pequenoscriadores.blogspot.com.]

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (13)

Ser assim ou assim-assim

  Fernando Paulouro Neves, na sua última crónica de “Notícias do Bloqueio” (na página 4 d’O Ribatejo), fala do caso Luaty Beirão com lucidez e elegância exemplares. Sobre esta situação concreta, portanto, não carece o jornal da minha prosa.
  Mas o caso remete-me para uma questão ética e moral (ainda) mais lata e profunda, passe a presunção: a do dever a que cada indivíduo está ontologicamente obrigado perante certos dilemas - momentos em que, digamos assim, não há direito a opções cinzentas, ao conforto do advérbio “talvez”, à prudência do adiamento, à cobardia da invisibilidade ou da indiferença.
 Temo que, ao contrário do que celebra Manuel Alegre na Praça da Canção, nem sempre haja alguém que, no momento certo e necessário, diga “Não” (ou “Sim”, conforme o contexto). Perante o extremo sofrimento físico e psicológico, que faria cada um de nós? Entre o emprego e a dignidade, entre a segurança e a liberdade, entre a refeição e a razão, entre a verdade e a sobrevivência – o que escolheria, se tivesse mesmo de escolher, cada um de nós?
 Ora, como diz certa personagem de Felizmente há luar!, de Luís Sttau Monteiro, há homens que se destacam da maioria e, pelo seu exemplo, nos obrigam a olhar ao espelho de nós próprios.
  Heróis como Luaty ajudam-nos a perceber o que, para além do que somos, poderíamos (deveríamos?) ser. Porque às vezes a vida cansa, mas um homem dança. Às vezes a meta não se vê, mas um homem crê. Às vezes o chão magoa, mas um homem voa. Às vezes o percurso é triste, mas um homem resiste. Às vezes não há caminho, mas um homem faz o caminho.


Ribeira de Pena, 02 de Novembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
 [Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 05-11-2015. As últimas frases do texto inscrevem, na presente prosa, versos de um poeminha meu já publicado em “Muito Mar”, “Viver apesar de”.]

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

In memoriam Carla Gil (1987-2015)



É belo e breve o voo das borboletas, esses seres meio flores, meio Sol que cruzam, por instantes, as nossas vidas cinzentas. Digo adeus daqui a uma querida beleza voadora que partiu hoje, tão demasiado cedo, cheio de saudades daquele seu sorriso lindo, cheio (sempre) de flores e Sol. Adeus, tão linda Carla!

Ribeira de Pena, 04 de Outubro de 2015.

Joaquim Jorge Carvalho