Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O problema da memória

 
Entre o Casal Ferrão e a baixa de Coimbra, o espaço ainda me parece essencialmente o mesmo. Falta aqui ou ali uma árvore, um montículo rochoso, uma escola, uma oficina de reparação de automóveis, uma mercearia, a garagem do sapateiro. Mas ali está o teimoso Mondego, o resistente Choupal, aquela vetusta (santa & clara) ponte ao fundo.
O problema de quem tem memória são as pessoas que aqui faltam. Nos faltam, me faltam. O senhor Figueiredo da Renault lendo A Bola à segunda-feira. A simpática dona Amélia no seu quiosque protegendo o escaparate da fúria do vento. O senhor Antero, à entrada do prédio, confessando-me formosas saudades de África. O elegante senhor Luís a caminho da paragem para o seu café da tarde. O senhor Pimentel, sempre apressado e sempre (como conseguia?) com um sorriso de festa. O meu pai explicando, com gestos arrapazados, como se jogava futebol à brasileira. O meu avô a imaginar e a fazer candeeiros com o material mais à mão. O meu tio Toni gargalhando saudavelmente no intervalo de uma sandes excessiva. O jovem Abel, recém-saído do serviço militar obrigatório, contando anedotas pouco antes de ser atropelado à curva do Lusa-Nova. Isto, sublinho, no que se refere à morte propriamente dita.
Mas também a velhice é um problema grande para quem tem memória. Por exemplo, o Bonacho inventando piruetas com bola antes de não se ter tornado, inexplicavelmente, o melhor jogador da sua geração. As meninas mais bonitas do universo, minhas vizinhas de prédio ou de rua, antes da gordura, das olheiras, das depressões ou da droga. Os meus irmãos cheios, como eu, de beleza, saúde e sonhos, muito antes da realidade que se sabe. A minha mãe com diabetes e pena de não ser já capaz de mudar sozinha o mundo. As pessoas da minha rua vendo-se, no meu ar grisalho e nos meus passos agora menos ágeis, ao espelho da sua própria finitude.
A memória é um tesouro, dizem. Talvez. Mas é também um problema, porque ocorre-nos pensar no mundo que havia antes de haver (só) isto.
E o relógio, queira a gente ou não, lá continua a trabalhar.

Arco, 20 de Fevereiro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em www.sapo.pt.]

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