Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

segunda-feira, 17 de março de 2014

Lembro-me...



Ontem, ao final da tarde, meu amigo Daniel Abrunheiro avisou-me, por telefone, de que iria enviar-me um mail muito interessante. É que passavam, explicou, cerca de 40 anos desde aquele dia em que militares vindos das Caldas tinham feito uma espécie de ensaio geral para o dia, mais formoso de todos, 25 de Abril de 1974. A rebelião, como se sabe, foi reprimida pelo regime, circunstância que adiou a chegada da liberdade querida. O Daniel deu-me conta de que, numa crónica então publicada no jornal República por Eugénio Alves, aparecia um texto sobre a revolta de 16 de Março, inteligentemente mascarada de análise da jornada futebolística: o Porto viera a Alvalade perder com o (meu) Sporting por 2-0 e o cronista aproveitou para falar da vitória dos “da capital”, não deixando de dar ânimo aos derrotados com uma nota proverbial e aparentemente anódina – a de que perder uma batalha não significar perder a guerra. A História não demorou senão um mês e uma semana a cobri-lo de razão.

Umas três horas depois desta conversa telefónica, fui ao Jumbo de Vila Real e comprei, por um único eurinho, um curioso livro de Ferreira Fernandes, intitulado Lembro-me que… (Oficina do Livro, Lisboa, 2004). O autor (jornalista reputado, sem dúvida um dos melhores cultores do género crónica que houve-há em Portugal) inspirou-se em duas experiências literárias anteriormente levadas a cabo nos Estados Unidos (por John Brainard, com I remember) e em França (por Georges Perec, com Je me souviens) - e, no seu caso, optou por, mais ou menos de memória, recordar fragmentos do passado que pessoalmente viveu entre 1 de Janeiro e 25 de Abril de 1974.

O mais interessante, neste documento, é o facto de um texto quase exclusivamente jornalístico-factual se tornar, devido à organização narrativa e ao ritmo (anaforicamente pontuado pela expressão “Lembro-me que…” repetida umas 330 vezes), numa literatura bastante próxima da poesia. Este achado genológico tem ainda a embrulhá-lo o aconchego de um amado tema – o 25 de Abril da nossa saudade.

A última frase do livro é: “Lembro-me.” E até esta aparente incompletude (parece que o autor se esqueceu do resto da frase – lembra-se de quê?) é retoricamente bem pensada: o que ali se quer dizer é, enquanto remate lúcido e talvez dorido, que quem viveu Abril não se esquece do que significou aquela data. Não se esquece nem se pode esquecer do que significa (tem de significar, hoje e sempre) aquela data.

E digo-vos: eu também me lembro.



Ribeira de Pena, 16 de Março de 2014.

Joaquim Jorge Carvalho


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