Há muitos anos, fiz algo de que me
orgulho muito e de que me não orgulho coisa nenhuma: roubei um livro. Eu sei
que roubar é feio, que roubar é errado, que roubar é indigno. Nem a desculpa
de, à época, eu ter apenas uns oito ou nove anos, é desculpa que se diga. Mas o
livro chamava-se As Pupilas do Senhor
Reitor, tinha uma capa bonita que sugeria histórias interessantes, ricas,
coloridas, aquele quiosque da Rua da Sofia (em Coimbra) era pouco vigiado – e
eu, enfim, Deus me perdoe, roubei aquele romance.
A proeza custou-me, nem dez minutos
depois, um valente tabefe da minha mãe e a ameaça de que, em regressando à
baixa coimbrinha, haveria de devolver o livro, sofrendo a vergonha provável das
testemunhas que ali houvesse. Nunca o devolvi. Fiquei, digamos assim, em
dívida.
O tempo, paciente, passou.
Li esse livro roubado com o prazer
que só as experiências mais lindas e queridas podem provocar. Descobri que
Júlio Dinis era (e é) um dos melhores contadores de histórias da nossa
literatura. Não do século XIX, atenção. De sempre!
Fiquei tão apaixonado pela sua
prosa que, à medida que tinha dinheiro e oportunidade, dei por mim a comprar
tudo quanto o autor escrevera. E que pena foi ele ter morrido tão jovem (com
cerca de 30 anos) – tanto que decerto ainda teria escrito, para eu ler, para nós
lermos!
Sabei que o primeiro romance que
Júlio Dinis escreveu não foi As Pupilas
do Senhor Reitor. Foi um outro intitulado Uma Família Inglesa. Mas ele quis publicar, em primeiro lugar, As
Pupilas. Teve, digo eu, a clara noção de que, no panorama literário português,
era com esse romance que impressionaria o público leitor. Tratou-se, digamos
assim, de um “cartão de visita” que fabricou e apresentou ao seu mundo, à sua
época. Algo como isto: “Olá. Chamo-me
Júlio Dinis. Escrevo assim… Gostam?”
No romance, a história fundamental
passa-se no campo (talvez na região do Minho). Tudo começa com a vocação de
Daniel para os estudos e para os amores. Depois, através da pena genial do
escritor, temos numerosos episódios ora divertidos, ora dramáticos: namoros,
discussões, anedotas, passeios, uma desfolhada, alguns conflitos, doces reencontros.
Página a página, há um Portugal
colorido e vivíssimo que, ao ritmo apaixonado da leitura, nos entra olhos e
alma adentro. Nunca talvez o mundo rural foi tão humanamente contado e mostrado
como nos contos e, sobretudo, nos romances de Júlio Dinis.
Não por acaso, cerca de 35 anos
depois do roubo que acima recordei, eu defendi uma tese de doutoramento, na
área da Literatura Portuguesa – e chamei-lhe “Acção, Cenas e Personagens na Narrativa
Dinisiana: As Pupilas do Senhor Escritor”. Foi a minha forma de pagar aquela
dívida antiga.
Garantia para os meus jovens alunos: vale muito a pena ler
este romance. E não é só para quem goste da maravilhosa magia de uma boa
narrativa. É também, ainda, para quem (como eu) gosta da ideia – imaginária ou
real – de um mundo simples e belo, em que as pessoas vivem simplesmente,
formosamente, naturalmente. O mundo em que, afinal, todos nós gostaríamos de
viver.
Arco de Baúlhe, 17 de Maio de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[Texto no âmbito da promoção da leitura que venho a levando a cabo na minha Escola, com outros colegas.]
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