Leitores ao espelho de si próprios
Miguel Torga é um dos grandes escritores portugueses de sempre. Cultivou vários modos literários – drama, poesia, ensaio, diarística, narrativa.
No território da narrativa, embora também tenha escrito romances, foi talvez no género conto que o seu génio mais se notou. Contos da Montanha, Novos Contos da Montanha e Bichos são volumes que têm encantado sucessivas gerações de leitores e que não cessam de surpreender pela riqueza das histórias narradas (fundadas na experiência pessoal do autor e numa extraordinária imaginação e competência literária) e pelas lições de vida compreendidas em cada conto.
Só aparentemente as histórias se reduzem ao domínio da fábula tradicional. Embora, na maior parte dos casos, encontremos animais como protagonistas, a verdade é que todos os contos estão carregados de uma humanidade próxima e facilmente reconhecível. As emoções de Nero (um cão) ou de Tenório (um galo); as peripécias de um burro ou de um pardal; a teimosia e coragem do corvo Vicente ou o ímpeto inevitável de uma cigarra cantadora – tudo é, afinal, um mundo simbólico que profundamente retrata ou evoca a vida humana, uma sociedade cheia de alegrias e tristezas, sonhos e medos, fúrias e amores.
Acontece-me com Bichos o que me acontece com grandes obras de arte – filmes, pinturas, música, grande arquitetura, literatura: de cada vez que nos encontramos (eu e a obra de arte), dá-se o milagre da novidade. E o milagre, a cada leitura (a cada encontro), renova-se.
Bichos é, de facto, um grande, grande livro da literatura portuguesa!
Arco de Baúlhe, 10 de janeiro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[Texto elaborado para a Biblioteca da minha Escola, no âmbito da promoção da leitura.]
4 comentários:
Tive que ler os «Bichos» no Secundário e ainda os tenho (a obra e alguns ditos cujos em carne e osso). Alguns dos contos impressionaram-me, sobretudo os que relatam os tristes fins do burro Morgado e do touro Miura (o do velho cão fiel, cujo nome agora não me ocorre, também). O estilo de Torga,que me pareceu (e parece ainda) combinar a crueza e a sensibilidade, a rusticidade e a elegância, impressionou-me bastante. Embora pessoalmente aprecie mais, como «pintor» do mundo rural, o Aquilino, Miguel Torga é para mim também uma grande referência.
Um abraço.
Na disciplina do conto, Torga é, creio, um dos nossos grandes! (Também aprecio Aquilino, claro - e compreendo bem a tua preferência.) Obrigado por aqui vires, Paulo. Abraço!
PS: O cão de que falas será o Nero...
Descobri Miguel Torga quando procurava um texto que descrevesse Trás-os Montes. Foi em Freixo de Espada à Cinta que o conheci. Foi amor à primeira vista... o Reino Maravilhoso nas suas palavras e nas inesquecíveis paisagens, gentes, sons, cheiros e momentos únicos que vivi. Como ele escreveu: "O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade, e o coração, depois, não hesite." Creio que assim continuo e orgulho-me disso!
Lembra, de certa forma, Exupéry - "On ne voit bien qu'avec le coeur. L'essentiel est invisibtre aux yeux." N'est-ce pas?
Bj.
Enviar um comentário