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terça-feira, 11 de julho de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (95)

Sobre o Teatro

Alguém, algures, há muito ou pouco tempo, escreveu uma peça de teatro. Entre a imaginação de quem escreve e o papel propriamente dito, viajam pessoas-personagens, coisas de mercearia e de alma, emoções, ideias, gestos, amores, vozes, cenários, luzes e sombras, sons de vento ou tempestade, talvez música: um mundo.
Eu leio essa peça. Surpreendo-me, rio-me, aborreço-me, comovo-me, indigno-me, tomo as dores de personagens-pessoas em papel-carne, amo-as ou odeio-as, aprendo (ou reaprendo) a olhar para a raça humana, vejo até, eventualmente, o que somos, o que sou.
Enceno essa peça. Quero ver no palco as pessoas-personagens-pessoas que me perturbaram, me encantaram, me desafiaram a mais profundamente perceber o que se passa, entre cada respiração e cada passo, comigo e com a vulgar humanidade que em conjunto somos. Preciso que os actores (escolhidos por mim) encarnem dignamente as palavras que li-senti no texto escrito por alguém, algures, há muito ou pouco tempo. Quero construir os exactos cenários para a peça, de acordo com as instruções didascálicas ou as sugestões psicadélicas concomitantes à leitura. Pretendo oferecer aos meus contemporâneos – ao público – um mundo novo, quiçá em forma de interrogação, ou de novidade, ou de inferno, ou de abrigo.
Entre alguém que há muito ou pouco tempo escreveu uma peça de teatro e a minha circunstância encenadora, há um fenómeno de comunicação não apenas cerebral, mas sobretudo estética. O nosso encontro resulta fundamentalmente de duas dimensões: amor e beleza. É dessa (e nessa) cumplicidade que nasce o espectáculo teatral. Imagem possível: o fósforo risca a lixa e incendeia-se. O espectáculo é o fogo enquanto dura (como, em outros voos, escreveu Vinicius), tanto faz que o dramaturgo seja o fósforo ou a lixa da metáfora, e o encenador idem.
A minha paixão pelo teatro começou na infância. Há, pelo menos, 30 anos que acrescento à minha missão de apóstolo da língua e da literatura a dinamização de clubes de teatro (e, na última década, de cinema). Não conheço melhor território para desenvolver, nos nossos jovens, o gosto pelo trabalho em equipa. O processo (feito de repetições, de correcção de erros, de interacção produtiva) tende a consolidar o princípio, prático e filosófico, de que o brilho do outro nos ajuda a brilhar a nós próprios, e de que a beleza geral do espectáculo depende de numerosos e distintos contributos de cada um.
Acabei de escrever o relatório que, na condição de coordenador do Clube de Teatro & Cinema da minha escola, tinha de apresentar no final do ano lectivo. No documento, recordei os objectivos deste espaço extra-curricular: contribuir para a formação cultural dos alunos; desenvolver o conhecimento e o gosto dos alunos na área da expressão dramática; cultivar o sentido estético e crítico dos alunos face a espectáculos de cariz performativo; contribuir para a auto e a heterodescoberta de talentos e capacidades, reforçando a autoestima individual e grupal; estimular a leitura de obras literárias de género dramático (sobretudo da Língua Portuguesa); treinar activamente a memória; desenvolver e sistematizar o trabalho em grupo; desenvolver competências essenciais na área da comunicação (no domínio da escrita, da oralidade e da expressão corporal); articular áreas do saber (Literatura, História, Ciências) com áreas eminentemente técnico-tecnológicas e artísticas (uso do computador; recurso a luz, som, desenho, pintura, música, dança); enriquecer o nosso plano de actividades.
Faltou-me dizer que o teatro é, muito para além das semanas de ensaios e dos trinta-quarenta minutos de récita, o que fica na cúmplice memória de público e actores: o termos estado juntos, naquele cósmico instante em que nos rimos ou nos comovemos - como se todos, ali, naquele momento, fôssemos a inteira humanidade.

Coimbra, 01 de Julho de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem é a de um cartaz anunciando um espectáculo a que pude assistir ao vivo, em Coimbra (no Teatro Avenida), há muitos anos. Fui então gratamente atropelado pelo belo texto de Eduardo de Filippo, Nápoles Milionária. O cartaz da Companhia Teatral do Chiado reproduz o original, datado de 1945. Na versão portuguesa, brilhava sobretudo o génio inesquecível do actor Mário Viegas.]

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