Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Quarto & Fotografias (Seis Poemas)


I

Uma fotografia está colada nas costas da porta:
Meu pai, minha mãe, a tia Rosário, o primo José e eu.
Vejo o meu pai ali muito vivo e rindo
De alguma piada do, então, presente.
Ao lado, havia, há anos, a praia
Mas uma nódoa de café com leite apagou o mar.
Ficou só o meu pai sorrindo
Sem poder navegar.


II

O meu pai cansava-se de estar na praia
Sem nada para fazer.
Olhar para o mar deprimia-o
E ele escapulia-se destas tardes para o Café do Jorge
Para seduzir ou rever balzaquianas avulsas.
 A minha mãe suspirava então em frente ao mar
E de tão ocupada nesta espécie de viuvez nem notava
A minha felicidade e o meu silêncio inteiro.
 Mãe, eu também sabia da dor seguinte à alegria
Mas havia aquele presente e eu não podia não ser novo.



III

No retrato está depois a minha mãe
Nova como a Loren do cinema e das revistas antigas.
Hoje está coberta de tempo e colecciona
Doenças da idade.
Que posso eu fazer senão amá-la cada vez melhor
E comprar-lhe (uma ou duas vezes por mês)
Um champô anti-queda que adie
Ou iluda
A calvície traiçoeira?


IV 

A tia Rosário embala o José a preto e branco.
Foi ela que me ensinou, há muito tempo,
Sobre o tempo,
Que era uma coisa que encarquilhava a pele.
Morreu depois e eu só então soube a verdade:
O que encarquilha, tia, é o coração.


V

Também o José partiu tão demasiado cedo
E eu agora só consigo recordar-me do seu riso
Muito limpo.
Enquanto eu me lembro e ele se ri
Não há morte.


VI

O meu lugar na foto é um menino na escola
E naquele tempo tinha muitos dentes brancos.
Mas o tempo é, sublinho, um tractor traiçoeiro
Que despedaça os nossos corações de vidro:
Veio portanto a gordura e foram-se
(Um a um, meio a meio, pedaço a pedaço)
Os dentes que antes sorriam, confiantes,
Para amanhã.
O poeta às vezes é isso, um sorriso desdentado
Que ama o mundo e afugenta o mundo;
O mundo não entende o seu amor tão especial
E a ele dói-lhe muito a repugnância mundanal.

Coimbra, 06 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[Estes seis poemas fazem parte de um volume a que chamei Escrever sobe não estares (2010). A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.br-pixersize.com.]

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