Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Poeta


Vale o poeta pouco
No mundo industrial:
Distrai-se, ledo ou louco,
Só a passear
E a só ver e amar
O essencial.

Ribeira de Pena, 22 de Outubro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.adilsoncosta.com.]

Quase


 
Enquanto não caem as folhas
São
Quase pássaros
São
Quase voo.

Ribeira de Pena, 22 de Outubro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.orizamartins.com.]

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A gramática e a querida literatura




1. Uma excelente aluna queixava-se, no final do ano lectivo passado, do facto de, nas aulas de Português (esclareço: nas minhas aulas de Português), haver pouco tempo para ler. Explico melhor (explicou-me ela melhor): apetecia-lhe que, nas aulas de Português, houvesse mais tempo para ler. Mais tempo para saborear a magia dos livros, das histórias, das palavras bailarinas ou acrobatas.
2. Eis, da minha parte, uma confissão triste: ela tinha razão. Ela tem razão. Culpo a extensão dos programas. E culpo, em particular, a obscena quantidade de conteúdos gramaticais a ensinar ou a consolidar.
3. Alguns amáveis teóricos defendem a possibilidade de se leccionar gramática nos (suaves e breves) intervalos da leitura e da escrita. Sugiro a quem, de boa -fé, queira estudar o assunto o favor de espreitar os programas de Português do 5.º. do 6.º, do 7.º, do 8.º e do 9.º ano. Verificarão facilmente que não é possível cumprir os programas, em matéria de gramática, sem efectivamente limitar o exercício da leitura, da interpretação, da discussão dos textos e da escrita a partir dos textos lidos - com óbvio dano da qualidade e do prazer das aulas de Português. Eu sei disso porque amo a literatura. E sei-o do ponto de vista do aluno (que também fui e, em boa verdade, continuo sendo) e, naturalmente, do ponto de vista do docente.
4. Uma real reforma no ensino do Português, que realmente quisesse elevar as competências dos alunos na comunicação oral e escrita, passaria pela supressão tout court, no primeiro e segundo ciclos, do ensino da gramática (na sua dimensão, sublinho, de conhecimento explícito da língua). No terceiro ciclo, o trabalho no território do conhecimento explícito da língua deveria limitar-se a aspectos verdadeiramente básicos. Só no ensino secundário se justificaria o ensino da gramática com a profundidade e a complexidade a que, no presente, se obrigam os alunos do terceiro ciclo. Mais: neste caso, os alunos do ensino secundário (em particular, os de humanidades) deveriam ter, além de Português, uma disciplina específica e exclusivamente ocupada da gramática – a que poderíamos, talvez, chamar “Gramática da Língua Portuguesa”.
5. Sei que o que digo não coincide com a vontade oficial da contemporaneidade. Mas eu colho da minha velhice esta possibilidade da livre expressão, sem medo e sem falsos pudores. Digo o que penso.

Cabeceiras de Basto, 18 de Outubro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www. neverendingstory.com.]

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Praia de Mira forever

Guardo nos meus olhos a praia, a Mãe,
A eternidade horizontal do mar
E tudo acorda quando, sonhando,
A vida verdadeira me regressa.

Ainda tenho o sal algures na boca
E o sol anos setenta no meu rosto
Ainda tenho o riso do meu Pai
E o vinho sossegado do Avô.

Acordo quando durmo, novamente
Em Mira, entre a macia mão da Mãe
E os alvores de amores inaugurais
Que eu, ao mesmo tempo, era e lia.

Vemos, todos vivos, a tele-gabriela
No café do jorge. Eis o certo instante
Em que a juvenil estrangeira, de repente,
Me dá um olhar verde como um beijo.

(Olhai que a poesia é talvez isto, os olhos
Abertos por dentro, a amável praia possível
Para sempre, Portugal campeão de hóquei,
Joaquim Agostinho explicado pelo Pai.)

Ribeira de Pena, 10 de Outubro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.olhares.sapo.pt.]

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Tele-Visões


 
No último fim-de-semana (antes, durante e depois das eleições), vi muita televisão. A minha memória, que é feita de amor e (menos frequentemente) de inteligência, reteve quatro programas. Recordo-os aqui, brevemente.

1.           No canal Syfy, um documentário mostra como seria a Terra se, subitamente, deixasse de haver nela gente. Isto é, pessoas. Isto é, humanidade. O exercício é, por natureza, impossível: a especulação habitante do condicional (“como seria” a Terra, disse eu) implica a presença do olhar humano. Mas adiante. O que me importa sublinhar, no devir assombrado daquele documentário, é a confirmadíssima pequenez e irrelevância da civilização humana, à luz magna do Tempo maiúsculo, essa eternidade feita de milhares-milhões de anos. Segundo os cálculos dos académicos envolvidos no argumentário do filme, em menos de cem mil anos (um piscar de olhos, na biografia do universo), qualquer vestígio da nossa presença teria desaparecido. E estava eu preocupado com o método de Hondt aplicado à minha Junta de Freguesia!

2.           Na TV Record, há um programa intitulado, salvo erro, “O Caldeirão do Huk”. Uma das rubricas compreende a transformação da habitação de determinada família, normalmente muito pobre, que a produção elege entre (adivinho) milhares de pedidos. No domingo, dia 29 de Setembro, o milagre tocou à porta de habitantes de Pará de Minas, no interior do Brasil. Vi uma mão de trinta e dois anos, viúva, com sete filhos a cargo. Filhos, recordo-me, muito bonitos e com idades entre um e quinze anos. O que me comoveu, naquela pobreza quase obscena, foi o amor (corrijo: o AMOR) que manifestamente existia entre mãe e filharada. Pormenor: era uma família que, por razões de penúria financeira, nunca se aviara num supermercado. A mãe contava a história do último réveillon (foi assim que ela disse: réveillon) do agregado, na casa muito pobre daquele bairro muito pobre. Só havia, para a ceia, feijão e arroz. E, a meio da cozedura, tinha-se acabado o gás do fogão. Um dos filhos (talvez com 12 anos) revoltou-se e chorou no ombro da progenitora. Esta prometeu-lhe, então, sem saber por que razão o fazia, que no ano seguinte tudo estaria melhor. Também explicou ao repórter que, no início de cada mês, quando recebia o magro salário, levava um dos filhos a almoçar numa lanchonete ou restaurante da zona, de modo a que a descendência tivesse contacto com lugares mais bonitos, onde se comia com garfo e faca. Porquê? “Porque a cultura é muito importante”, explicou a mãe. Eu chorei durante a reportagem, confesso. E, quando os vizinhos de favela gritavam, felizes, à chegada dos camiões para obras de transformação da casa, “Ela merce! Ela merece!”, também eu o gritei interiormente: “Ela merece!” Ela, quero dizer, a heroína exemplar daquela vida, a minha irmã brasileira, minha querida irmã do planeta Terra.

3.           Num dos canais de notícias, vi uma reportagem sobre a vida nas prisões dos Estados Unidos. Entre tantos acidentes humanos, havia aquele rapaz de dezanove anos, à espera de ser condenado a prisão perpétua, que confessava ter assassinado um homem devido a uma dívida de vinte dólares. Explicava, cândido: “Não me queria pagar. Por isso, matei aquele filho da puta!” O repórter quis saber o que sentia o preso, perante a perspectiva de uma vida inteira na prisão. O entrevistado levou alguns segundos a escolher a resposta, depois disse: “Alívio.” Relief, man! No desenvolvimento, entre sorrisos tristes, diz que nunca conheceu o pai, que a mãe (alcoólica, drogada e ocasionalmente prostituta) raramente estava em casa. Que o irmão mais velho andava sempre a fugir, quer da polícia, quer dos outros gangues. Que a irmã era prostituta desde pequena e que desprezava a família. A prisão – repetia – era um alívio. Eu percebo. Isto é, dói-me que a prisão, qualquer prisão, represente um alívio para este preso, para qualquer preso, mas percebo. Como não?

 

Arco de Baúlhe, intervalo d’almoço (antes de voltar à poesia do Daniel Abrunheiro), 04 de Outubro de 20132.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.mises.org.br.]