Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sábado, 18 de maio de 2013

Dívida a Júlio Dinis



Há muitos anos, fiz algo de que me orgulho muito e de que me não orgulho coisa nenhuma: roubei um livro. Eu sei que roubar é feio, que roubar é errado, que roubar é indigno. Nem a desculpa de, à época, eu ter apenas uns oito ou nove anos, é desculpa que se diga. Mas o livro chamava-se As Pupilas do Senhor Reitor, tinha uma capa bonita que sugeria histórias interessantes, ricas, coloridas, aquele quiosque da Rua da Sofia (em Coimbra) era pouco vigiado – e eu, enfim, Deus me perdoe, roubei aquele romance.
A proeza custou-me, nem dez minutos depois, um valente tabefe da minha mãe e a ameaça de que, em regressando à baixa coimbrinha, haveria de devolver o livro, sofrendo a vergonha provável das testemunhas que ali houvesse. Nunca o devolvi. Fiquei, digamos assim, em dívida.
O tempo, paciente, passou.
Li esse livro roubado com o prazer que só as experiências mais lindas e queridas podem provocar. Descobri que Júlio Dinis era (e é) um dos melhores contadores de histórias da nossa literatura. Não do século XIX, atenção. De sempre!
Fiquei tão apaixonado pela sua prosa que, à medida que tinha dinheiro e oportunidade, dei por mim a comprar tudo quanto o autor escrevera. E que pena foi ele ter morrido tão jovem (com cerca de 30 anos) – tanto que decerto ainda teria escrito, para eu ler, para nós lermos!
Sabei que o primeiro romance que Júlio Dinis escreveu não foi As Pupilas do Senhor Reitor. Foi um outro intitulado Uma Família Inglesa. Mas ele quis publicar, em primeiro lugar, As Pupilas. Teve, digo eu, a clara noção de que, no panorama literário português, era com esse romance que impressionaria o público leitor. Tratou-se, digamos assim, de um “cartão de visita” que fabricou e apresentou ao seu mundo, à sua época. Algo como isto: “Olá. Chamo-me Júlio Dinis. Escrevo assim… Gostam?”
No romance, a história fundamental passa-se no campo (talvez na região do Minho). Tudo começa com a vocação de Daniel para os estudos e para os amores. Depois, através da pena genial do escritor, temos numerosos episódios ora divertidos, ora dramáticos: namoros, discussões, anedotas, passeios, uma desfolhada, alguns conflitos, doces reencontros.
Página a página, há um Portugal colorido e vivíssimo que, ao ritmo apaixonado da leitura, nos entra olhos e alma adentro. Nunca talvez o mundo rural foi tão humanamente contado e mostrado como nos contos e, sobretudo, nos romances de Júlio Dinis.
Não por acaso, cerca de 35 anos depois do roubo que acima recordei, eu defendi uma tese de doutoramento, na área da Literatura Portuguesa – e chamei-lhe “Acção, Cenas e Personagens na Narrativa Dinisiana: As Pupilas do Senhor Escritor”. Foi a minha forma de pagar aquela dívida antiga.
Garantia para os meus jovens alunos: vale muito a pena ler este romance. E não é só para quem goste da maravilhosa magia de uma boa narrativa. É também, ainda, para quem (como eu) gosta da ideia – imaginária ou real – de um mundo simples e belo, em que as pessoas vivem simplesmente, formosamente, naturalmente. O mundo em que, afinal, todos nós gostaríamos de viver.
  
Arco de Baúlhe, 17 de Maio de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho

[Texto no âmbito da promoção da leitura que venho a levando a cabo na minha Escola, com outros colegas.]