Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

In Memoriam Arménio



O meu colega Rovira, que jogou comigo no União de Coimbra há 18 anos, disse-me tristemente:
- Morreu o Arménio.
O Arménio era guarda-redes. Pouco alto para a função, com um ar rural mais do género Bento que do género Damas, tornava-se um gigante e um acrobata corajoso durante a hora e meia da função futebolística.
Era gago e brincava, sem complexos, com isso. Era simples e generoso. Era um homem com a franqueza e a grandeza genuína do campo português.
Gostaria de ter estado no seu funeral.
Joguei com ele no Luso, quando subimos, sob a batuta do mister Filipe, à 2.ª divisão nacional. Reencontrei-o no União, às ordens do mister Niza. Em qualquer dos lugares e em qualquer dos tempos, o Arménio era aquela enorme competência a defender as balizas e, simultaneamente, uma das gargalhadas mais puras de toda a nação futebolística que conheci.
A morte do Arménio é mais uma numa época que começa a ser, na minha vida, uma espécie de Outono final de tudo. Na minha rua, uma língua de alcatrão está onde eram duas árvores à entrada da Escola do Casal Ferrão. As fotografias dos meus álbuns são maioritariamente de gente que já partiu. O calendário tem apodrecido muitas coisas belas que há não muitos anos eram a formosura maior do mundo. O União de Coimbra já não tem futebol sénior. Para cúmulo, a minha filha cresceu e estamos, em minha casa, muito mais sós. A Coimbra que eu queria está, agora, a muito mais dos 260 quilómetros rodoviários. Talvez nunca mais lá chegue, afinal.
O tumor do Arménio e o resto: tudo lapsos de fim. Tudo fim.
Hoje, no regresso a Ribeira de Pena, muito desiludido com a profissão, com a vida, com isto tão pobre que foi feito de mim, aterrou no meu carro uma imagem terrível, digna talvez de piedade ou troça: eu num barco, à proa, olhando em frente; atrás, o meu pai, o meu cunhado José Manuel, o meu sogro, a minha tia Rosário, duas colegas, o Arménio. Ouvia bem os gritos deles, o terrível chamamento deles, mas em frente, pensava eu, é que estava a vida. Não me apetecia nada olhar para trás. Ou, mesmo que apetecesse, temia olhar. Contudo, o cabrão do barco inclinava-se para a ré, puxava-me para a ré, reclamava-me para a ré, tal o peso dos mortos.
O Arménio defendia a baliza das suas equipas como poucos. Estou aqui a recordá-lo forte, sólido, confiante, destemido, prático, eficaz, risonho – mas não me consigo libertar desta imensa pena de não haver defesa para a puta da mortalidade.

Ribeira de Pena, 12 de Outubro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, no blogue dos Veteranos do União de Coimbra.]

domingo, 10 de outubro de 2010

Gabriela Mistral: Impressões de um Encontro


Encontrei inesperadamente, no Centro Comercial “Fórum – Dolce Vita”, uma senhora chilena que poucamente conhecia até hoje. Fui grata vítima do seu encanto, feito de palavras e de visões muito lindas, ainda que muito tristes, sobre a vida e sobre a escrita. A senhora chama-se Gabriela Mistral e recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1945. Foi diplomata ao serviço do seu país e, nas curvas da sua biografia, esteve também em Portugal por algum tempo. Ao receber das mãos do sueco rei Gustavo V o prémio, não deixou de dizer: «Graças a uma felicidade que me transcende, sou neste momento a voz directa dos poetas da minha raça e a indirecta das muito nobres línguas espanhola e portuguesa.»
Gabriela Mistral (nome literário de Lucila Alcayaga Godoy) faleceu oficialmente a10 de Janeiro de 1957. Digo “oficialmente” porque, ao contrário do que atrás refiro, a senhora está viva e falou comigo, seduzindo-me com graça e brilho bem notáveis.
Encontrei-a sob a forma de uma Antologia Poética , na mesa circunstancial de uma mini-feira do Livro, ao irresistível preço de 3 (três) Euros. O livro, com selecção, tradução e apresentação de Fernando Pinto do Amaral (Lisboa, Ed. Teorema, 2002), revisita a – curta – obra da autora e foi para mim, nessa noite de 9 de Outubro, uma espécie de regresso ao Verão.
Dou-vos a saber alguns dos pedaços de encontro que obtive com Mistral.
Nas páginas 13 e 14, a autora explica um pouco da sua arte poética. Para além de defender, desde logo, a importância da memória para um escritor («escrevo no meio de uma emanação de fantasmas» - p. 13) e de a busca da perfeição formal implicar muito e humilde esforço («Corrijo mais do que as pessoas julgam […].», p. 14.), Gabriela Mistral diz-nos que este ofício de escrever não se faz em linha recta: «Vim de um labirinto de colinas e alguma coisa desse nó fica em tudo o que faço, seja verso, seja prosa.» (p. 14.) Que a escrita responde a uma necessidade sobrevivência (de quem escreve e de quem lê), consubstanciada na urgência de um território amigável, uma pátria essencial onde se possa verdadeiramente estar: «Escrever […] É a sensação de ter estado por umas horas na minha pátria real, no meu costume, no meu desejo à solta, na minha liberdade total». (p. 14.)
Lembra também que escrever é uma forma de dar ordem às coisas, ao mundo: «Gosto de escrever numa sala arranjada, embora seja uma pessoa desarrumada. A ordem parece oferecer-me espaço, e esta ânsia de espaço têm-na a minha vista e a minha alma.» (p. 14.) E que, nessa unidade espaço/tempo que a vida humana é, o próprio passado se pode reunir ao presente, nomeadamente pela recuperação da infância: «A poesia é em mim muito simplesmente um resíduo, um sedimento da minha infância submersa.» (p. 14); «Alguns países eu recordo / como recordo a minha infância.» (“Água”, p. 68.) A própria Natureza recupera entes e circunstâncias de outrora, presentificadas no discurso poético: «A ovelha diz-lhe “Mãe” / e o vento diz-lhe “Amada”.» (“Patagónia”, p. 113). A poesia aporta, afinal, os mil pormenores vistos, aprendidos e sentidos na Infância – e o que fica é, por paradoxal que tal se nos afigure, o contrário da ausência: «o rio dentro do meu sonho.» (“Camponeses”, p. 105.)
Curioso é o facto de a autora defender a condição primacial da linguagem poética, da qual o mundo se vai tragicamente afastando. A Poesia parece ser a voz da Verdade: «Talvez o pecado original seja apenas a nossa queda na expressão racional e anti-rítmica à qual desceu o género humano […].» (p. 14.)
A leitura da poesia mistraliana está, eu vos garanto, cheia de pedras preciosas. Ofereço-vos algumas das que me mais e emocionaram. Exemplos, portanto.
Gabriela Mistral diz-nos (lembra-nos) que o Amor nos obriga a (querer) ser melhores: «Se olhares para mim, eu torno-me formosa». Dito de outra forma: o Amor torna urgente a necessidade de nos (re)avaliamos e de nos tornarmos mais dignos da Beleza que o Amor requer: «Agora que vieste e que me viste / dei por mim pobre e senti-me despida» (“Vergonha”, p. 26.)
Revemos, em boa medida, Garrett num discurso que admite, sem remédio (mas com graça) a coexistência de Céu e Inferno no Amor: «Dá-me Tu o final desta lenha / em fogão que não deixe de arder;» (“Nocturno da Consumação”, p. 61); «Aprendi que um amor é terrível / e me corta o bem cerce o prazer: / já ganhei o amor do vazio, / o seu desejo de nunca voltar, / a vontade de ficar na terra, / mão na mão e mudez com mudez, / despojada do meu próprio Pai, / já ceifada de Jerusalém!» (“Nocturno da Consumação”, p. 60.)
Um pouco semelhantemente ao que defende Saramago em Jangada de Pedra (quando diz de um encontro amoroso tratar-se da fundação de um Indivíduo novo, feito dos dois que se unem), a chilena sugere que um encontro de eus funda um novo Eu, uma espécie de dança una e harmoniosa: «Chamo-te Rosa e eu Esperança; / mas o teu nome esquecerás, / porque seremos uma dança / sobre a colina e nada mais.» (“Dá-me a mão”, p. 33.)
Fundamental, contudo, é que o Amor exista, por grande que seja o preço a pagar em sofrimento(s). O Amor permite-nos a sobrevivência de um motivo para acordarmos e nos levantarmos todos os dias: «Chama-me onde estiveres, ó minha alma, / e anda ter comigo, companheiro.» (“Canto que amavas”, p. 72.)
Sensível e lúcida como um Alberto Caeiro que viajasse para a Patagónia, Gabriela Mistral olha enlevada para uma (bela) criança adormecida. Quer ensinar –lhe, como a um anjo limpo, o ouro de se manter pura: «Quero ver se lhe ensino / o sono que esqueci». (“Sono grande”, p. 37.)
Eu tenho uma filha já com 26 anos e sabe Deus como me dói que ela cresça, me fuja. Manuel Alegre diz que a certa altura uma filha «não cabe já no berço» (Cão Como Nós, cito de cor). Mistral clama: «Não quero que esta menina / se transforme em andorinha.» (“Medo”,p. 38.)
A escrita é pessoal, em primeira instância. Mas é universal por destino. Nasce-se, como ensinou o nosso António Vieira, num lugar definido e concreto. Mas vai-se depois morrer, sublinha Mistral, num «país sem nome». (“País da Ausência”, p. 53.)
É ofício do poeta buscar resposta para a grávida incompletude do mundo visto por dentro. Isso explicará querer-se sempre o que não há, ou o que não é imediato nem óbvio – mas que é sempre o essencial: «Eu amo as coisas que não tive / tal como as outras que não tenho:» (“Coisas”, p. 54); «Procuro um verso que perdi, / e que aos sete anos me disseram. / Uma mulher a fazer pão / e cuja santa boca eu vejo.» (“Coisas”, p. 54); «Torna crianças os sentidos; / procuro um nome e não acerto, / cheiro a atmosfera ainda em busca / de amendoeiras que não vejo.» (“Coisas”, p. 55); «Ou o rio Elqui da minha infância / que ainda subo e atravesso. / Eu nunca o perco; e peito a peito, / como crianças, abraçamo-nos.» (“Coisas”, p. 55.)
É preciso reagir. É preciso actuar. É preciso fazer, criar. È preciso podar (n)a vida: «eu podo-a com um amargo brio / pra lhe dar o aspecto de um meu filho / até que se me torne criatura.» (“Sonetos da Poda – III – Filha da Árvore”, p. 85.)
Num belo poema intitulado “Pão”, Gabriela Mistral lembra-me o narrador de Aparição, de Vergílio Ferreira (nessa ideia de recolhimento, silêncio, paz e plenitude que o início e o fim daquele romance estrategicamente edifica). Escreve a chilena: «Como esta casa está vazia / fiquemos juntos, reencontrados / nesta mesa sem carne nem fruta, / ambos assim, neste silêncio humano, / até que os dois sejamos outra vez um só / e o nosso dia tenha terminado.» (“Pão”, p. 65.)
A rematar, retenho o que Gabriela Mistral diz para explicar o sentido que pode haver num simples gesto, na assunção de um movimento, na coragem de uma visita ou de um encontro voluntário: «Pude não voltar – voltei.» (“A Desprendida”, p. 83.)
Ainda bem que (me) voltaste, Gabriela. Ainda bem que te encontrei, nos encontrámos.

Coimbra, 10 de Outubro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://poetsseers.org/nobel_prize_for_literature/gab/gabp.]

sábado, 9 de outubro de 2010

Quadra Militante


Não deixes que o caminho te escureça
Não deixes que alguém te colonize
Não sejas de quem te não mereça
Não queiras ser o chão de quem te pise.

Coimbra, 08 de Outubro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC.]