Eu não falo e só olho à
volta quando ninguém está a olhar para mim. Vivo dentro de uma nuvem e quase
mais ninguém entra nela (só a minha mãe e a minha irmã, às vezes, porque ambas
não são bem outras pessoas, são como se fosse eu próprio).
Eu sou aquele à
direita, na fotografia sobre o aparador. Eu sou aquele junto à senhora de vestido
verde com a barriga grande. A senhora de vestido verde é a minha mãe. O meu
pai, na fotografia, é aquele homem alto com um bebé ao colo. O bebé cresceu e
tornou-se o meu irmão grande. Isto é, o meu irmão tornou-se maior do que eu.
Eu lembro-me do dia em
que a fotografia foi tirada. Era uma manhã de Verão. Estava connosco um Estranho.
Estava connosco um Outro. O meu pai pediu ao Outro que nos tirasse uma
fotografia. (“Ó primo, tire-nos uma fotografia.”) A praia também ficou na
fotografia, por detrás do cabelo da minha mãe. A praia chama-se Figueira da
Foz. Ainda lá vamos, mas é raro. O Outro já morreu. Ouvi o meu pai, um dia,
lamentar a sua morte por ser ainda tão novo para morrer. (“Coitado do teu
primo. Era ainda tão novo para morrer.”) Por mim, acho que é sempre cedo para
se morrer, mas isto não se aplica aos Outros, porque os Outros, como eu os
vejo, já estão mortos, mesmo que estejam vivos. Na fotografia, a minha mãe tem
a barriga muito grande. Soube, depois, que havia um bebé dentro da sua barriga.
O bebé apareceu em nossa casa a um domingo. Era uma menina. A minha mãe
mostrou-ma e disse-me que eu agora já tinha também uma irmã. (“Olha. Agora
também já tens uma irmã.”)
Gosto de passar
despercebido. Preciso de passar despercebido. A maior parte das vezes consigo
passar despercebido. As pessoas, quase todas, são Outros. Quero dizer: quase
todas passam por mim como se eu fosse ninguém. É como se a minha nuvem fosse um
manto mágico e eu andasse pelo mundo tão invisível como um sonho secreto.
Mas eu sei muito. Vejo
quase tudo, ouço quase tudo, sinto quase tudo.
O meu pai tem o cabelo
avermelhado e os olhos claros. A sua voz é forte. É uma voz que assusta de
início, mas que se torna mansa logo a seguir.
A minha irmã tem os
olhos azuis. Ao princípio, achava que era um bocadinho de céu em visita à minha
casa. A sua voz parece um canto de ave pequenina ou, então, um longínquo
murmúrio do mar, entre a Figueira da Foz e Buarcos. A sua voz. Estou a ouvi-la
só por falar nela. A minha irmã toca-me ao de leve na cabeça e eu, apesar de
normalmente não gostar que me toquem (sobretudo que me toquem na cabeça),
consigo ficar quieto, sem gritar nem fugir. Só a ela e à minha mãe concedo esse
direito.
O meu irmão é,
visto-sentido de dentro da minha nuvem, mau. O meu irmão é mau. Ouço-o gritar
com a minha mãe, o meu pai, a minha irmã. Interrompe, com gargalhadas ou
resmungos, a música ou o mar que é sempre a minha irmã contando histórias da
universidade. Eu corro, nessas ocasiões, para o meu quarto e sento-me na cama a
abanar a cabeça para a frente e para trás, até a minha raiva adormecer e eu sentir
que a minha nuvem já se recompôs. A minha nuvem quebra-se e recompõe-se, é assim.
Quando isso acontece, sinto muito calor na cara e os cavalos dentro do meu
coração deixam de correr como doidos. O regresso da minha nuvem faz-se como se
ela fosse um puzzle grande: os seus cacos tornam-se, de novo, uma nuvem
inteira.
Ouço frequentemente o
meu irmão a empurrar a mesa e as cadeiras, a bater com as portas, a sair de
casa, sempre aos gritos. Por vezes, berra na minha direcção:
-O autista é que manda
nesta casa de doidos! Tenho de vos pedir desculpa de ser normal, não?
1 comentário:
"As pessoas, quase todas, são Outros. Quero dizer: quase todas passam por mim como se eu fosse ninguém."
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