Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Feriado de Corpo de deus


Hei-de um dia ter saudades deste dia 
Das mãos do meu amor, do meu conforto – 
De modo que celebro essa alegria 
Tão simples de hoje não estar morto. 

Celebro a frágil Mãe, que vive ainda 
O livro com que falo ultimamente 
A minha Filha única, tão linda 
A amável torrada, o café quente. 

Hoje fui correr pela manhã 
(Venci muita preguiça, muita dor) 
Depois senti-me forte, a mente sã 
E o coração cheinho de amor. 

Vi da janela, à tarde, a romaria 
A procissão pisando o chão de flores 
E ouvi uma senhora de Alvadia 
Agradecer a Deus por Seus favores. 

Eu de mui simples coisas me alimento: 
Nada é mais eterno que o Momento. 

Ribeira de Pena, 20 de Junho de 2019. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[Foto JJC]

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Vida pecanina

Cão da rua, cão visto de manhã
Cão visto à tarde no regresso a casa 
Cão de tantos dias, meses, anos
Cão não velho até ser velho
Cão lento, cão doente, cão mortal
Cão espelho da minha antiguidade
Cão com cio cão latido cão uivo 
Cão rosnando cão ladrando
Cão mordendo cão morrendo
Cão presente cão ausente
Cão saudade. 

Ribeira e Pena, 16 de Junho de 2019. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem (o famoso Brian, de Family Guy) foi colhida, com a devida vénia, em https://clipartportal.com.] 

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Sépia

Gosto de fotos antigas
De ver os agora mortos vivendo ainda tanto 
Tão fora de não estar vivos 
De ver as casas ainda jovens 
Muito anteriores à ruína do devir 
De ver campos e flores em vez de cimento civil 
De perceber a pureza ingénua dos gestos 
Ainda livres do cinismo técnico-tecnológico. 

Até em fotos de guerra vejo humanidade – 
Um esgar de aflição ou de prazer 
Um sorriso malandro, uma dúvida qualquer 
Uma mulher fugindo sensualmente das bombas 
Um soldado fumando no intervalo do medo. 

Gosto de ver o presente que há ali 
Em fotos para sempre cheias de esperança 
Como senão houvesse morte seguinte Àquele momento           
Como se cada instante fotografado fosse 
A eternidade. 

Arco de Baúlhe, 12 de Junho de 2019. 
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto, já usada neste blogue, grava no tempo um instante familiar, na Praia de Mira, aí por 1968.]

domingo, 2 de junho de 2019

Café Facebook

Há muito que explico a minha (esparsa) ligação às redes sociais com a imagem de um Café onde se vai para uma breve visita, quiçá para uma breve conversa. É um lugar para ver e se ser visto, não necessariamente para interagir, pois para tal é preciso disposição, vontade e tempo. 
Ultimamente tem-me apetecido dizer adeus para sempre a esse convívio, nem sempre higiénico, nem sempre amável, nem sempre civilizado. Os frequentadores mais ferozes destes espaços assemelham-se cada vez mais a milícias furiosas e maledicentes, com traços bipolares (talvez “multipolares” seja a palavra certa), como se buscassem o mínimo pretexto para expelir ódios, frustrações, veneno e depressão. É tudo de um maniqueísmo básico e radical, muito preto-branco, muito salazarento (“Quem não está por nós, ó meus amigos, está contra nós!”). 
Há pouco, sucedeu-me comentar a atitude de Sérgio Conceição, treinador do Futebol Clube do Porto, que se recusou, na tribuna de honra do estádio do Jamor, após perder a final da Taça de Portugal em futebol, a cumprimentar o presidente do Sporting Clube de Portugal. O que defendi foi que toda a gente, enquanto indivíduo, tem o direito de escolher cumprimentar ou não cumprimentar outrem - mas que, no plano institucional, marcado por aquilo a que chamo o “decoro institucional”, devemos sacrificar a pulsão individual e agir de forma digna. (“Digna”, sublinho, no sentido etimológico, i.e. no sentido de estar à altura das circunstâncias.) 
Não foi, naquele contexto, o indivíduo Sérgio Conceição quem deu provas de arrogância e mau perder. Foi algo muito maior do que o (provisório) funcionário: o secular Futebol Clube do Porto. Creio, aliás, que o que pretendia ser visto como um gesto de afirmação de carácter acabou por redundar num muito feio episódio de arruaça.
Como compreenderão, a discussão extravasa o cariz clubístico-tribal. Trata-se de preservar um reduto mínimo de civilidade e de educação. Mas caiu-me logo, sobre a prosa, um adepto do FCP (e, "por arrastamento", do cidadão Sérgio Conceição), dizendo que o arruaceiro era eu, que os “meus” (referia-se aos jogadores do Sporting) haviam feito um “jogo sujo”, que o árbitro não sei quê. Assinalei-lhe, em resposta, alguns erros de ortografia e manifestei-lhe a óbvia indisponibilidade para manter qualquer “diálogo”, arrependendo-me mil vezes de ter ido ao Café Facebook. 
Como diria o amado escritor/filósofo Jean-Paul Sartre, “L’enfer, c’est les autres”. (Mas nós somos os outros dos outros…) 
Cada vez mais o Café virtual se parece mais com uma tasca, com espinhas, beatas de cigarro, cascas de tremoços e insultos pelo chão e pelo ar. Talvez passar por lá seja má opção. Talvez o melhor seja ficar em casa, respirar ar ainda puro, passear pela humanidade serena em quem confiamos. Questão já, diria eu, de sobrevivência. 

Coimbra, 25 de Maio de 2019. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em https://saude.abril.com.br.]