Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

domingo, 29 de março de 2020

Bernardim em mim


   Um pássaro qualquer cantou à janela do meu quarto aí por meia hora. Acordei com essa espécie de melodia aflita e, muito depois de a ave partir para alhures, a ansiedade ficou comigo. O dia pareceu-me triste, com pouca luz, a anunciar chuva. Fiquei a pensar, entre outras mágoas, na minha frágil Mãe e em brutidades iminentes que sofro sempre por antecipação. 
   Há dias, ó pássaro Bernardim, que já trazem consigo a noite. 

Joaquim Jorge Carvalho 
Coimbra, 29 de Março de 2020. 
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.aves.mundo.entrepatas.com.]

sábado, 28 de março de 2020

Soneto de durar



Um idoso sobe a rua com o cão 
O carteiro desce a rua e assobia 
A vizinha de cima aspira o chão 
Eu arrumo lentamente mais um dia 

Um súbito carro faz-se à estrada 
Há fila na farmácia da esquina 
(Tudo menos tudo igual a nada) 
Eu vou à janela da rotina 

Cães ladram nas varandas; outros cães 
Respondem livremente do passeio 
Ao lado uivam Pais e uivam Mães 
Eu sento-me à lenta mesa e leio 

Passou-se a manhã como se nada 
Se passasse; parece adormecida 
Esta rua tão fechada em si 

Agora nem há carros na estrada 
Silente e suspensa está a vida 
Entro no livro para sair daqui 

Coimbra, 28 de Março de 2020. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em https://www.infoescola.com.]

sexta-feira, 27 de março de 2020

Sol & sombra



   Televi, em documentário já com muitos anos, um testemunho de certo francês que viveu os horrores do início da Segunda Guerra. Num dia de Sol (não me lembro se de Primavera ou de Verão), famílias inteiras tiveram de se deslocar, em fuga, avisadas de iminentes ataques aéreos do inimigo. No filme, o sobrevivente recordava que toda aquela movimentação estava eivada de uma dimensão de festa, com muita cor, vozes altas, piadas, partilha de alimentos e bebida, cantigas em coro. 
   Tendo a pensar que a Natureza desempenhou ali um papel muito importante para a enganosa felicidade das gentes: imagino as roupas garridas das moças em fuga, tão mais próximas do que seria habitual; as valentias adolescentes de rapazes ou de jovens adultos; os comentários verrinosos das mulheres mais velhas observando a vizinhança fatalmente ridícula; o entusiasmo (quiçá involuntário) dos chefes de família no cumprimento do dever de salvar as respetivas proles. Imagino um dia quente, a magnífica vegetação à volta, uma fonte súbita para matar a sede. Festa. E, contudo, não se esqueçam, estava para chegar a guerra, a destruição, a morte – e todos, de uma forma ou de outra, sabiam disso. 
   Hoje, a meio da manhã, a luz primaveril beijou a minha rua inteira. Por momentos, adormeceu-me a ansiedade com que tenho vivido. Depois, lembrei-me daquele documentário e do francês a falar de certa fuga com Sol. 

Coimbra, 27 de Março de 2020. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://cigales-eloquentes.over-blog.com.]

quinta-feira, 26 de março de 2020

Livros, Felicidade & Amor





  Por vezes, do nosso baú digital saltam memórias: papéis, correio, fotos. Dei por mim a recordar uma atividade que envolveu Cabeceiras, há algum tempo, envolvendo alunos, professores, auxiliares e comunidade educativa em geral. Lembram-se dos milhares de cachecóis com que se abraçou o Mosteiro? Entre uma dezena de fotos, encontrei a da dona Glória (preciosa funcionária, ligada sobretudo à biblioteca da Escola do Arco), a da professora Lurdes Francisco (docente de Ciências, que o meu Clube de Jornalismo entrevistou há pouco tempo) e a de alunos do segundo ciclo (todos com um sorriso digno da própria ideia de Primavera). Também havia uma fotografia comigo a fazer de conta que tricotava, em pose inverosímil e desastrada, mas poupo-vos a essa.
  A olhar para as fotos, registo um especial pormenor, neste presentíssimo contexto em que nem o magnífico Sol nos distrai da realidade tão triste e perigosa dos dias: o de pairarem, sobre os rostos cheios de futuro dos alunos, duas palavrinhas que (entre outras ali não visíveis) iluminam os livros da nossa biblioteca: Felicidade e Amor. Coincidência poética, está-se mesmo a ver, pois não há Este sem Aquela, nem Aquela sem Este. 

Coimbra, 26 de Março de 2020. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[Estas fotos fizeram parte de um pequeno filme (muito lindo) que exibimos no Sarau da Escola do Arco de 2019.]

quarta-feira, 25 de março de 2020

Actualizar & continuar

   
   Manhã com muito trabalho: correcção de trabalhos dos alunos, elaboração e envio das últimas fichas do segundo período, registo da autoavaliação e – aqui a grande novidade – proto-conselhos de turma preparatórios da avaliação do segundo período. Com recurso à admirável (e, confesso, perturbadora) tecnologia mais avançada, participei em reuniões com colegas, cada um(a) no cantinho de sua casa. O meu “estúdio” foi a minha cozinha (a MP estava a fazer o mesmo na sala). E confirma-se: o homem é um animal excepcionalmente dotado para a adaptação a novas situações: aqui estou eu, aos 56 anos, com três décadas e meia de século XX, estrebuchando por um lugar nesta actualidade tão futurista. Na verdade, é isso que todos fazemos, a cada momento, no caminho raramente fácil que trilhamos, não é verdade? À imagem do que regularmente ocorre com os computadores, nós actualizamo-nos

Coimbra, 25 de Março de 2020.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC]

terça-feira, 24 de março de 2020

Homem à janela (interrupção)


   

   Se o grito e o gesto são momentaneamente inúteis e, por neles gastares preciosa energia, te agravam o sofrimento, deixa-te estar. Encosta a tua cabeça ao silêncio, confunde-te com a realidade à tua roda, e descansa. Observa discretamente o que vai sucedendo, deixa que te creiam inócuo, atesta-te de quanto oxigénio possas sorver, reganha forças. Um dia será outro dia. Reerguer-te-ás mais forte e confiante, para surpresa e talvez pânico de quem te ignorou e desprezou. Inundá-los-ás com a tua luz e a tua razão. Talvez confessem que precisam de ti. E tu, como um deus verdadeiro, esquecerás o nojo anterior e ajudá-los-ás. A tua limpa bondade ser-lhes-á difícil de entender e alguns odiar-te-ão por não seres como eles. Mas o essencial será que o teu grito e o teu gesto, enfim oportunos e válidos, farão o mundo melhor. 

Coimbra, 24 de Março de 2020. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[Imagem obtida a partir de foto MPC.]

segunda-feira, 23 de março de 2020

Hiato silvestre




A bonina nascente espreita a manhã 
Sofrendo o frio, a falta de luz.
O Sol demora
(vem nos jornais)
E a flor
(ainda desconhecedora da esperança)
Adia-se.

Coimbra, 23 de Março de 2020. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.galeria.colorir.com.]

domingo, 22 de março de 2020

Em guerra

   
   
   Senti sempre este estranho fascínio por livros, filmes e documentários televisivos acerca da Segunda Guerra Mundial. À força de me interrogar sobre esta curiosidade-pulsão, já me ocorreram várias explicações: trata-se da História moderna, muito próxima do que somos hoje, no espaço e no tempo, enquanto civilização; trata-se de um trágico laboratório que revela algumas das piores versões da humanidade (o fascismo, o nacionalismo, o racismo, a xenofobia, a intolerância ideológico-religiosa, a crueldade, a perseguição, a delação, o grau de brutidade de que o ser humano é capaz, etc.) e também de uma espécie de uma espécie de lição sobre o preço e o valor da resistência (grato monumento à solidariedade, à coragem, ao sentido de justiça, à resiliência, ao sacrifício). 
   Tendo a ver-sentir, nesta luta contra a Covid-19, semelhanças com o conflito militar que se travou, na primeira metade do século XX, entre o nazismo-fascismo e os aliados. Não por acaso se diz que estamos, hoje, neste contexto de ameaça e medo, “em guerra”. Na verdade, também agora está em causa a nossa saúde colectiva, a nossa sobrevivência, o nosso futuro. Há esse consabido pormenor de lutarmos contra um inimigo invisível, que ataca de forma traiçoeira e potencialmente letal. 
   Não custa adivinhar o que para aí vem (ou para aí vai) de comportamentos associados a contextos de salve-se quem puder, que se acrescentam à ameaça do próprio vírus: egoísmos, desconfianças, cinismo, crueldade, agressões, teorias da conspiração, aproveitamentos popularucho-populistas de falsos Messias, fascistas em bicos de pés prontos a atacar a verdade científica, negócios oportunistas, vigarices políticas. 
   Mas, tal como no século XX, igualmente nos apercebemos da Valentia, da Generosidade e do Bom Senso de gente limpa e sensata, de homens e mulheres que olham muito para além do seu umbigo, de pessoas com cérebro e coração. Em Portugal e no mundo, a hora é de nos aliarmos e de resistirmos. Juntos. 

Coimbra, 22 de Março de 2020. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A foto foi colhida, com a devida vénia, em http://www.noticiasaominuto.com.]

sábado, 21 de março de 2020

Mestre Esperança



   De súbito, atiram-nos para cima um consabido tesouro: o tempo. Estamos em casa e o fascismo dos horários sente-se menos. 
   Se, por uns segundos, uns minutos, umas horas, escondidos das notícias, escaparmos à obsessiva presença do maldito vírus, damos por nós a cumprir tarefas que há muito adiáramos. 
   Se por alguns momentos, interrompermos a angústia de pensar na Mãe e na Irmã fragilizadas e à mercê do que aí vem (e nas famílias dos outros, sujeitas à mesma ameaça que sobre nós impende), damos por nós a pensar em nós e nos outros. 
   Se por uns instantes, nos abstrairmos da momentânea falta de comida, de medicamentos, de detergente e de papel, damos por nós a pensar no que a vida significa e é. 
   Hoje, enquanto preparava o café e o pão de cada manhã, após a abrir a janela que devolve a luz à minha cozinha, lembrei-me do Mestre João, meu Sogro. Já há dez anos que o perdemos. Ainda por aqui andam, contudo, as suas lições, a sua bondade, o seu bom humor e o seu sorriso teimosamente optimista. Recordo-me de o ouvir louvando-agradecendo cada novo dia, espantando-se com a beleza de uma paisagem, glorificando a aragem fresca do (seu) Sítio do Piquinho ou celebrando o milagre das novas tecnologias. 
   Em 2004, quando certo tsunami gigantesco encheu de terror e de desespero a humanidade inteira, ele estava em Coimbra, em minha casa, no meu sofá. Vi como, de lágrimas nos olhos, lamentava a sorte de milhares de homens e mulheres como fossem seus vizinhos ou familiares. E de, depois, numa retórica feita mais de coração que de catecismos, falar de esperança e do que o mundo tinha de fazer para ajudar os necessitados. 
   Dava-me jeito, agora como sempre, ter o Mestre João ao pé de nós, guiando-nos para o Sol. 

Coimbra, 21 de Março de 2020. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A foto foi tirada há mais de vinte anos (em Machico, Madeira). Foi há bocadinho.]

sexta-feira, 20 de março de 2020

Diário íntimo: Chuva e Público

  
1. Durante toda a noite, um dilúvio abateu-se sobre Coimbra. Espreitei, assustado, o fenómeno, aí pelas três e meia: a bátega atingia estrada, passeios, árvores, carros, como se a Natureza estivesse farta desta falsa calma que é a solidão. Pormenores cinematográficos: a luz dos candeeiros transformava os fios de água em serpentinas multicolores e em toda a rua se ouvia um som grave como o da vibração de instrumentos de corda. Poderia ser a cena inicial de um filme de terror; mas não resisti a encontrar certa beleza misteriosa nesta violência nocturna. 
  2. O dia amanheceu escuro e permaneceu triste pelas horas seguintes. São agora três e meia da tarde. Fios pluviais ininterruptos cruzam o horizonte para lá da minha janela. Tenho ocupado o tempo com teletrabalho e leituras avulsas (Branquinho da Fonseca, Raul Brandão, Dinis Machado, Eça). Já não há frutos secos. A televisão e a rádio não cessam de debitar a novela repetida e trágica da pandemia. Afeitos à lição do medo, protegemo-nos, ou julgamos que nos protegemos. Sinto remorsos por não visitar Mãe e Irmã, pouco me consolando ouvir-lhes as vozes via telemóvel. Senti a minha Mãe, hoje, mais desanimada do que é costume (ela disse que era da chuva). 
  3. Só hoje me apercebi de que o Público - grandíssimo jornal - disponibiliza a informação sobre o coronavírus de forma gratuita. A atitude é de uma nobreza extraordinária, muito para lá da dimensão ético-deontológica. 

Coimbra, 19 de Março de 2020. 
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC]

quinta-feira, 19 de março de 2020

Quarentena


Da minha janela vê-se a interrupção do mundo. Sou vizinho involuntário do deserto.
Lá fora há algum Sol, mas cá em casa sente-se muito o frio.
Temos pouca comida armazenada, quase nada (haverá quem tenha menos). Amanhã, numa fugida, devo ir às compras. 
Ainda agora, li notícias de açambarcamentos e de prateleiras vazias. A condição humana, às vezes, não merecia que se lhe chamasse humana.
O País fala de esperança para evitar falar de medo.
E eu escrevo para quê, pá? 
Neste caso, parece-me, para evitar a solidão.

Coimbra, 19-03-2020.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.cmjotnal.pt.]

quarta-feira, 18 de março de 2020

Mãe, 80 anos, a minha vida

   
A minha Mãe cumpre hoje oito décadas. Assustados com tantas doenças vizinhas da morte (pulmões, tiróide, mama, intestinos), pouco acreditávamos na longevidade desta Senhora. Não por acaso, há dez anos fizemos questão de reunir filhos, noras, genro e netos para uma festinha que, entre comida e piadas, mal disfarçava o odor à ideia de fim a haver. O tempo passou e Ela resistiu elegantemente ao calendário: continua bonita, com alegria de viver, adepta das palhaçadas que inventamos. É verdade que, por vezes, não nos reconhece à primeira, troca nomes e parentescos, embrulha alimentos e esconde-os, pede que a levem para sua casa e compreende mal que lhe garantam que aquela é a sua casa, resiste às nossas orientações por não as entender ou porque não lhe apetece – mas é capaz de uma súbita ternura que vale o mundo, como agradecer-me algo banal ou simplesmente pedir-me que fique ali ao pé de si “um bocadinho”, sempre com jeitos de menina frágil. Um dia, em viagem de carro, questionei-a sobre a identidade dos viajantes: com alguma ajuda, disse o nome da neta e o nome do neto; quando chegou a minha vez, disse-me que eu era “o pai”. Confirmei que, com o tempo, ela tem devindo nossa filha.
A mortalidade em geral é uma coisa estúpida. Mas a dos nossos amores é um excesso de crueldade, que me custa muito a perceber e a aceitar. Neste tempo do vírus novo e mortal, vou interromper a minha reclusão para ir a casa da minha Mãe e dizer-lhe que a amo. Talvez não o diga com estas palavras. Talvez nem sequer a beije, por razões de prudência sanitária. Se Ela estiver um bocadinho lúcida, vou falar-lhe dos cuidados de higiene que deve observar e de momentos felizes por onde temos andados juntos. Mentalmente, vou sofrer uma quadra nascida há minutos: 

Quão caro é o preço de viver
Quão funda é a ferida da saudade
Que triste é uma flor envelhecer
Que triste é não haver eternidade. 

Parabéns, Mãezinha! 

Coimbra, 18 de março de 2020. 
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto é de 2006 e tem Coimbra ao fundo. A foto é eterna.]