Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

domingo, 29 de julho de 2018

Pessoa contemporâneo

Reli, na passada 3ª feira, a magnífica Fotobiografia de Fernando Pessoa, assinada por Richard Zenith, com a colaboração de Joaquim Vieira na recolha e organização dos documentos (edição de Temas & Debates, 2009). O livro foi-me oferecido por preciosa Amiga já há vários anos, e com gentil dedicatória de que me orgulho.
Gosto de biografias – e ainda mais quando o texto vem acompanhado de imagens (fotos, fac-símiles, testemunhos, etc.). Talvez a volúpia de um literato que espreita, com grata impunidade, a existência de um génio como Pessoa se assemelhe à do voyeur mais patológico que anda pelas praias e parques de estacionamento do mundo à cata de flagrâncias escandalosas. Zero remorsos. O que me ficou, acima de tudo, desta releitura foi a sensação de proximidade e cumplicidade exponenciais que os grandes artistas conseguem com o mais anónimo dos indivíduos leitores (e isto – não se esqueçam – é dito aqui por um indivíduo razoavelmente anónimo).
Ocorreu-me uma expressão interessante para classificar esta gente genial, tendo sobretudo em conta a perenidade da arte que criam: contemporâneos da eternidade
Há muito defendo a ideia de que a Cultura tem o poder de nos tornar concidadãos do Tempo Todo, aquém e além imortalidades contextuais de cada eu, de cada sociedade, de cada época.
O Amor é algo diferente: se a Cultura é o que nos torna contemporâneos de um Tempo comum, o Amor prova a nossa fundamental semelhança com a raça humana de todos os tempos.
Sumário: não confundir Cultura e Amor - uma coisa é a contemporaneidade, outra é a semelhança. Esta repete-se e confirma-se, aquela explica-nos.

Coimbra, 28 de Julho de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho

sábado, 28 de julho de 2018

O carrossel do Tempo



O Tempo é um carrossel (eterno, bem entendido). Vejo-o, por um instante, rodando à minha volta, talvez acenando, do lombo de uma girafa ou de um elefante, enquanto a música da vida toca, às vezes roufenha devido ao uso repetido. Saio das mãos de minha Mãe para a estreia assustada na escola; uns vinte anos depois, a minha Filha sai das minhas mãos, imitando lágrimas e tremores, para a sua própria estreia no mistério escolar. A minha Mãe, nova e formosa, segura-me a cabeça enquanto, num paroxismo de febre, vomito desesperadamente para o chão do meu quarto de criança; quarenta anos depois, eu seguro a cabeça de minha Mãe, agora envelhecida e doente de muitas coisas, enquanto ela vomita para a sanita doméstica. Levo a minha Filha às urgências do hospital pediátrico, conduzindo apressadamente, enquanto lhe vou assegurando que aquilo vai passar; a minha Filha, vinte e cinco anos depois, conduz-me ao hospital, explicando-me que aquilo são cólicas renais e que já vai passar. 
Digo daqui adeus ao Tempo e creio que ele me vê desta vez, iniciando novos círculos, no regaço de uma música que se devora a si mesma, a caminho de ser apenas ruído ou nada.

Coimbra, 28 de Julho de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem - a evocar o mítico programa infantil "Carossel Mágico" - foi colhida, com a devida vénia, na net.]





quinta-feira, 26 de julho de 2018

A eternidade a preto & branco


É um mistério este poder que sobre mim exerce uma qualquer fotografia antiga. Foi sempre assim, creio, desde que me conheço. Pode ser uma foto minha, de uma familiar, de outras pessoas (conhecidas ou desconhecidas), de um castelo, de uma rua, da azáfama no antigo mercado de peixe, em Machico, da equipa de futebol do Desportivo de Ribeira de Pena de há 40 anos ou mais. Aquilo toca-me como um aceno da Eternidade. Arrepio-me, comovo-me, imagino, sonho. Há nisto um encanto que a razão incompletamente explica. Agora mesmo, no Facebook do meu primo António Melo, numa imagem a preto e branco - entre a avó Adília e a tia Laurinda - descubro a minha querida Mãe, muito mais nova do que é hoje a minha Filha (sorridente e muito longe de sequer imaginar que seria um dia a minha tão querida Mãe). O Tempo, portanto: essa coisa verdadeiramente consubstancial a Deus! 


Ribeira de Pena, 26 de Julho de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho

Alexandre


Ainda vou na primeira metade de Julho. O meu carro pede-me combustível. Antes de seguir para a escola, estaciono nas bombas de gasolina de Cabeceiras de Basto e preparo os 20 euros habituais. Uma gargalhada cumprimenta-me: é o Alexandre, um ex-aluno, que assim celebra um reencontro já tardio. Saio do carro e saúdo-o. Não foi um discípulo fácil, tamanha era a sua irrequietude e a facilidade com que se distraía. Ainda que involuntariamente, interrompia-me o curso convencional da aula e não poucas vezes o repreendi. Foi sempre, contudo, um menino educado e respeitador, armado sempre de um sorriso desconcertante. Falo com ele sobre estudos e profissão: diz-me que não chegou a completar o secundário, que gosta daquele emprego (“Agora, estou aqui a falar consigo; daqui a pouco, aparece-me um amigo; é fixe.). À despedida, dou-lhe um aperto de mão, digo-lhe sinceramente que gostei de o ver e dirijo-lhe uma última palavra (não sabendo então que seria a última): “Felicidades!” Quando a minha colega Senhorinha me disse que o jovem afogado na barragem era “o nosso Alexandre” (sic), chorei por dentro e indignei-me, uma vez mais, com a insensatez e injustiça da Morte, essa grande puta. O funeral foi uma monumental manifestação de pesar e de saudade. Durante a caminhada para o cemitério, sob o Sol inclemente de Julho, voltei a lembrar-me daquela alegre irrequietude e daquela ruidosa urgência de viver que caracterizava o Alexandre. Como se ele já soubesse (digo eu agora) que não havia tempo a perder. 

Ribeira de Pena, 23 de Julho de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho

O Segredo de Terabítia



A cada passo, descubro maravilhas de que nem tinha ouvido falar. A vida, enquanto dura, é mesmo um baú maravilhoso que vale bem a pena explorar. Acabo de telever, no canal Cinemundo, na Cabo, um filme maravilhoso, já de 2007. Título em português: O segredo de Terabítia (em inglês, Keep Your Mind Wide Open). Realizador: Gábor Csupó. É uma maravilhosa história sobre a amizade, a fantasia e o sonho. Confirmei, envolto naquele mar profundo que é a emoção estética, como a Morte é mais poderosa que tudo, excepto que o Amor. E fiquei com vontade de, talvez já no próximo ano lectivo, mostrar o filme aos meus alunos. Recomendo-vo-lo a vós, também!

Ribeira de Pena, 23 de Julho de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida, na net, no sítio da Record TV.]

quinta-feira, 12 de julho de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (144)



Condição de gladiador

A lógica das competições a eliminar – como é o caso dos campeonatos da Europa e do Mundo, na modalidade sagrada do futebol – compreende um pressuposto cruel: no final da fase de grupos, de 32 candidatos restam 16; depois, nos oitavos de final, de 16 restam 8; etc. Na final da competição, enfrentam-se duas equipas carregadas de sonhos, de pulsão épica, conscientes do cariz definitivo daquela oportunidade voadora. Sai-se dali herói & imortal, ou em versão morto-vivo, tresandando a falhanço, quiçá sujeito à piedadezinha condescendente ou a coisa pior. 
Depois de sofrer a derrota portuguesa às mãos do Uruguai e depois de assistir à eliminação da Espanha, da Dinamarca, do México e do Japão, confirmei que o reverso da glória de uns é a desmesurada tristeza de outros. Pelo meio, felizmente, há gestos de fair play que nos consolam e educam. Mas a minha simpatia (Europeu de 2016 à parte) vai invariavelmente para os que perdem, i.e. aqueles que experimentam, em determinados momentos, o fel da vida. 
Bem sei que o futebol é apenas um jogo. Bem sei que as derrotas e as vitórias, ali, são realidades de somenos quando comparadas com as verdadeiras tragédias – doenças, guerras, falecimentos, exploração, violência, pobreza, fome. Creio, contudo, que a natureza das lágrimas dos jogadores mexicanos, de uma formosa dinamarquesa ou de um menino espanhol, reagindo à derrota, é a mesma que verteriam noutras circunstâncias, por exemplo na leitura de um romance, no visionamento de um filme, no acto de escutar uma canção, num reencontro familiar, num funeral, durante uma epifania à mesa do Café. Porque somos, enquanto humanos, frágeis e magníficas vítimas da circunstância de pensar e de sentir. 
A memória, via cinema, traz-me os gladiadores que, no tempo dos Romanos, divertiam os espectadores com os seus combates mortais. Diziam, ao entrar para a arena: Ave Caesar, morituri te salutant (traduzo livremente: “Os que vão morrer, ó César, saúdam-te”). Isto é, a morte (nesse dia ou mais tarde) era uma premissa inerente à sua própria condição gladiadora. Fazia – e faz – parte do jogo. Em princípio, note-se, nenhuma equipa joga para perder. Nenhum jogador se demite de sonhar. Nenhum homem entra na competição sem a devida dose de ilusões. Mas o preço a pagar, mais cedo ou mais tarde, para os que perdem, é fatalmente alto. E sabemos bem como as desilusões são atropelamentos graves, que obrigam a recuperações quase sempre lentas e dolorosas. 
Não estou só a falar do Mundial da Rússia. Estou a falar da Vida. Dói-me saber que o Pepe, o Fonte, o Bruno Alves, o Quaresma e o Cristiano Ronaldo já são trintões (como, aliás, o Messi, o Iniesta, o Modric) – e que o seu fulgor tenderá a apagar-se em breve. Quem viver verá, talvez, como os deuses de hoje passarão de apolíneos gladiadores a obesos calvos, sujeitos ao reumatismo e às saudades. 
O futebol continua, claro. E, claro, a vida continua. Novos craques estão a despontar, há novas competições na calha, o presente é já o futuro a mostrar-se. Mestre João, meu tão saudoso sogro, fazia questão de, em qualquer festa, pôr toda a gente a cantar uma quadra que sempre me impressionou: “Primavera das flores / Como ela não há mais! / Ai, Primavera vai e volta sempre, / Ai, Mocidade já não volta mais!” Tem sido essa, na verdade, a melodia que preside a tudo quanto vejo-sinto-escrevo. 

Nota extra: Esta crónica foi a útima que concebi para O Ribatejo, em versão de papel. O timoneiro do semanário informou-me desse iminente fim do nosso jornal na sua dimensão tradicional, corpórea, natural. O último número saiu mesmo a 12-07-2018. Custa-me esse ocaso; conforta-me a ideia de que sobreviverá digitalmente. Não gosto destes tempos, porém. Temo que o papel da imprensa venha a degradar-se com o fim da imprensa de papel. Abraço solidário para todos quantos têm feito e lido o jornal. Gratidão reiterada ao Daniel Abrunheiro e ao Joaquim Duarte, que me trouxeram para este regaço digno e livre. 

Coimbra, 02 de Julho de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem da última capa d’O Ribatejo em papel foi colhida, com a devida vénia, no sítio do jornal. A foto de Cristiano Ronaldo foi colhida, com a devida vénia, em https://www.sapo-pt-]

segunda-feira, 2 de julho de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (143)


António, Filho de Pedro

Ainda não são onze horas e tenho intervalo na labuta diária até às dezassete. Voo para casa, antecipando mentalmente as tarefas imediatas a cumprir: ficar descalço, substituir calças por calções, tirar a cerveja do frigorífico, pôr o cachecol à janela, ergonomizar o sofá e assegurar a Nosso Senhor Cristiano que confio n’Ele e no(s) Santos. À uma da tarde começa o Portugal-Marrocos. 
Sucede que, como é ainda cedo, faço um zapping mecânico e dou com uma entrevista, na TVI, que me concita a atenção: Manuel Luís Goucha conversa com António Rolo Duarte, Filho de Pedro Rolo Duarte (falecido há pouco tempo, como decerto sabem). Para além do cariz temporão da morte deste jornalista, aos cinquenta e três anos, vítima de doença oncológica, doeu-me que os jornais, a rádio e a televisão tenham perdido um senhor importante, que escrevia e falava bem, que era inteligente, que tinha sentido de humor, que era livre & desassombrado. É dele uma frase verdadeiramente extraordinária (que debati com os meus alunos de Jornalismo, na década de 90 do século XX) – cito de cor: “O Expresso é o maior jornal português; o Público é o melhor; O Independente é o mais importante.” Tudo, à época, uma verdade pura e rigorosa. 
Na entrevista, conduzida de forma respeitosa, segura e amável, Goucha – que é muito mais que aquele boneco pimba de concursos e gritarias de feira – convidou António a falar do Pai, a propósito de um livro (que estou a ler) intitulado Não respire. É uma edição póstuma, que o jornalista concluiu no cais derradeiro da sua existência. Pai e Filho chamaram-lhe, no durante da sua concepção, e rindo-se ambos da pompa vocabular, “a obra”. Encontramos aí memórias, crónicas, episódios cheios de humanidade e vizinhança, reflexões sobre o Presente tão exageradamente fugidio e provisório, apontamentos do encanto e do desencanto, vidas. 
Realço o facto de fazer parte desse volume uma espécie de livro-dentro-do-livro intitulado 16 Ideias Para Um Rapaz de 16 Anos Levar Consigo Para Longe. Trata-se de um opúsculo expressamente escrito por Pedro Rolo Duarte em vésperas de António partir – sozinho - para a Austrália, onde faria o ensino secundário. O Pai, apesar de assustado com a distância a haver, deixou-o ir, mas passou-lhe para as mãos um conjunto de recomendações (sábias, sensatas, divertidas) que deveriam servir também para o adulto, ainda que ausente, estar com o jovem.
Ouvi algumas destas “ideias”, nem todas originais por aí além (sê tu próprio, persegue os teus sonhos, etc.), outras brilhantes (por exemplo, o importante, em relação ao medo, é o que fazemos com ele). Identifiquei-me com António, lembrando-me do meu Pai, ausente há muitos anos, e principalmente com Pedro, lembrando-me da minha Filha, para quem um dia não serei senão memória. Perguntei-me: que reterá de mim a minha Filha quando eu já não estiver para a aconselhar, de viva voz, sobre a existência? Talvez, ocorre-me agora, uma frase que costumo atirar para a mesa das reuniões familiares ou para a areia da praia de Agosto: o fundamental é distinguir, em cada momento, o essencial do acessório; e, atenção, embora o essencial varie de acordo com o contexto, deve estar sempre ligado aos direitos do Amor e aos deveres da Honestidade. Pelo sim, pelo não, inscrevo isto uma crónica de jornal, por ser da natureza da escrita durar mais do que a tão falível circunstância de se estar vivo. 
Sumário: no dia 20 de Junho, houve esta entrevista e, depois, um golo mais de Cristiano Ronaldo. Ganhei o dia por dois a zero. 

Coimbra, 23 de Junho de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 28-06-2018. A imagem (capa do livro de Pedro Rolo Duarte) foi colhida, com a devida vénia, em https://www.fnac.pt.]

Foto com talvez 20 anos


A foto é antiga, meu amor, 
Mas guarda eternamente a ilusão
De não existir aquela Dor
De ser tão provisório o Verão.

Tirando o fotógrafo, ali estão
Todos, meu amor, vivos ainda.
E eu solto o flash desta gratidão
Por pertencer a esta foto linda!

Coimbra, 25 de Junho de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
(ILYSM)