Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

A professora e o pato

Manuela recebeu um pato, a certa segunda-feira, sem esperar tal gentileza. O senhor Venceslau, pai do Gregório, do 3.º ano, não se esquecera do que a professora fizera pelo filho, aquando do ataque de epilepsia sofrido durante o primeiro período lectivo, Ela apercebera-se do episódio e soubera fazer o que as circunstâncias ditavam: afastara toda a gente do menino, colocara-o em posição de segurança (deitado de lado), puxara-lhe a língua para fora, no sentido de prevenir a asfixia, e sentara-se sobre o seu corpo até ele acalmar. 
O senhor Venceslau era agricultor e tinha uma pequena criação de patos e galinhas. Soubera, pelo filho, que a docente gostava de patos desde menina (dos verdadeiros e dos que via desenhados em livros, em desenhos animados, ou em forma de brinquedos). Ainda tinha pensado em comprar um ganso em porcelana que vira na feira de Cernache, mas a escultura era cara. De modo que optou mesmo por um pato vivo e levou-o à professora, numa segunda-feira. 
A professora sabia que uma eventual recusa seria lida pelo humilde ofertante como uma ofensa. Ficou com o pato, agradecendo-o. Com o tempo, habituou-se à presença do animal e fez dele sua companhia querida e constante. Era vê-la passeando com ele, rua acima, rua abaixo, como se se tratasse de um cão. 
À medida que envelhecia, o juízo da docente ia variando muito, e uma das suas pancadas era ensinar aquele pato a voar. Leu livros de biologia e de aeronáutica, observou o voo de outros patos e demais aves, aconselhou-se dissimuladamente com colegas de profissão, médicos, autarcas e caçadores. Contudo, em mais de uma centena de experiências, nunca o bicho lhe fez a vontade. 
Até que um dia o pato desapareceu. Algumas vizinhas desconfiaram logo de uns jovens arruaceiros, que vinham dos lados de S. João do Campo, e adivinhavam um provável repasto à base de arroz e da carne desfiada da gentil criatura. Mas a professora não parecia preocupada com o desaparecimento do companheiro. Garantia a toda a gente que o Donald finalmente voara e seguira para o Sul. 
- Quem me dera eu própria fazer o mesmo… – dizia. 
Acrescentava, sorrindo: 
– E só não o faço devido às minhas obrigações profissionais e a este défice de asas com que nasci! 

Arco, 15 de Janeiro de 2019. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em https://pt.pngtree.com.]

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Sísifo, ou o Tom Sawyer do Bairro do Brinca


O Tiago tem apenas oito anos, não lhe peçam para aguentar a missa dominical sem se distrair, bocejar, protagonizar espasmos de impaciência. Aproveita tudo para se ocupar mentalmente, enquanto o senhor padre debita a homilia e o povo corresponde mecanicamente às suas deixas. 
Foi o caso da migalha que uma formiga transportava, naquele Domingo, entre a décima fila de bancos (a contar do altar) e a base de uma coluna encostada à parede direita (para quem entrasse), um pouco à frente da pia baptismal. Interessou-se logo pelo esforço titânico do insecto, à bulha com um pedacinho de pão que tinha o dobro do tamanho do minúsculo ser. Pobre e brava formiga, suportando o peso da comida, a irregularidade do piso, feito de cimento e ladrilhos cheios de poeira ou cotão, o barulho ambiente, composto de vozearia humana, às vezes em rezas uníssonas, outras de tosse, manifestações de catarro, suspiros.
Tiago percebeu que o objectivo da formiga era chegar a um pequeno orifício que mal se vislumbrava, mesmo no início da coluna. Apoiou-a mentalmente, como se ela fosse uma atleta do seu clube preferido, talvez em luta por um título mundial. Quase no final da cerimónia, a multidão de crentes agitou-se. As pessoas murmuraram “Amen” e o padre autorizou-as a sair: “Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe.” Umas dezenas de pés cruzaram, em tropel rumo ao exterior da nave, o caminho da formiga, pisando-a ou empurrando-a.
O Tiago ficou para trás. Segundos depois da debandada, já não havia sinais do insecto nem da migalha transportada, naquele meio metro de teatro trágico. A mãe percebeu-lhe a tristeza nos olhos:
- Que foi, filho?
Ele disse:
- Nada.
Quem soubesse o que acontecera nos últimos vinte ou trinta minutos, no solo da igreja, perceberia bem o que o rapaz queria dizer com a sua resposta. (Está bem, o narrador explica: referia-se ao resultado do esforço da formiga.)

Arco, 14 de Janeiro de 2019.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, na net.]


Cãocerto lírico


Nessa noite, ela ia constantemente à varanda e gemia como se estivessem a arrancar-lhe as entranhas. Quatro andares abaixo, ele uivava de desejo. Minto: eles uivavam de desejo, pois eram dois. Aliás, três. Isto é, quatro. 
Na manhã seguinte, quando a Dara e a Maria saíram de casa, a Dara desatou a correr, como se a sua liberdade dependesse da velocidade com que conseguisse fugir. No largo da igreja do Salvador, logo apareceram os quatro cavalheiros caninos da noite anterior, que desataram a cheira-lhe a intimidade, após o que, à vez, tentaram semear futuros no ventre da fêmea. 
Maria, a dona da fogosa cadela, ficou furiosa com aquela fuga. Uma vizinha disse-lhe, rindo, que o animal escapara porque queria ser livre e amar. Mas Maria sabia, sem o verbalizar, que o amor e o desejo também podem ser uma prisão. 

Arco, 11 de Janeiro de 2019. 
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC.]

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Sarita e a estações


Como diria Skármeta, o mundo é metáfora do mundo (podia ser: as vidas são metáforas da Vida). Sarita, a moça de Lisboa que, segundo o jornal, foi presa em Coimbra pelo roubo de dois relógios numa grande superfície comercial, lembrava-se de ter acordado com muito frio. Era ainda Outono, mas aquela ventania gelada que assobiava da porta para o interior da casa assemelhara-se a um comboio anunciando-se ao longe: vinha aí o Inverno. 
Pergunta: quantos invernos há em cada vida? Muito mais do que os do calendário biográfico, diria Sarita, a julgar pelos desgostos variados e constantes dos últimos quarenta anos: o Pai, que a defenderia para sempre, morreu-lhe tão cedo que nem viu a filha comungar pela primeira vez; a Mãe, que era o abrigo maior, entregou-a à avó pouco depois de enviuvar, fugindo a seguir com um professor qualquer do Algarve; o Avô, que poderia ser uma espécie de pai alternativo, abusou de si, e nem ele nem a avó perdoaram à neta a denúncia pública daquela indignidade; o namorado engravidou-a antes de ela ter vinte anos e, logo que tomou conhecimento do nascituro, fugiu para França. Uma vida, diria a Sarita, cheia de Inverno. 
As drogas tinham chegado como uma espécie de intervalo, aparentemente solar, que prometia interromper o frio e o abandono anteriores. Mas, como ela própria depois admitiria, ao médico do Hospital da Universidade de Coimbra, não eram afinal senão novas invernias. Ainda por cima, caras. Tão caras que a levaram à prostituição e ao roubo, duas vergonhas que, vistas à luz da necessidadezinha, significavam só a possibilidade de dinheiro rápido. 
Naquela tarde, a Sarita morria de dores. Desde bastante cedo, sentira a agressão do pior dos frios dentro do seu mundo. Sem sucesso, mendigou dinheiro a vizinhos e a turistas transeuntes, ofereceu serviços de sexo a um ucraniano das obras, prometeu a um dealer pagar-lhe mais tarde a querida dose. Entrou no supermercado pelas três da tarde. Cirandou pela ala dos perecíveis e pela ala dos indiferenciados. Viu os relógios, estimou-lhes o preço, recolheu dois (agachando-se e escondendo-os no interior das sapatilhas). Ficou tudo filmado pelas câmaras de segurança. 
No tribunal, quando lhe falaram de prisão, encolheu os ombros. A juíza enunciou as vantagens da desintoxicação e da reintegração na sociedade: 
- A senhora tem filhos? 
- Tenho uma, mas não a vejo há mais de vinte anos. 
- Se eu a deixar sair com pena suspensa, promete-me que vai mudar? 
- Não sei. 
- Não sabe ou não quer? 
- Não sei. 
A juíza revelou impaciência. 
- Preciso que seja mais concreta na sua resposta. Diga-me o que vai fazer a partir de agora… 
- Vou esperar que se acabe o Inverno, doutora juíza.


Ribeira de Pena, 11 de Janeiro de 2019. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em https://pt.dreamstime.com.]

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Os ausentes


Solipsas tinha traços semelhantes ao bisavô paterno, um grego com olhar triste, vindo de Atenas para Espanha, e depois para Portugal, há talvez um século. 
Quando se sentia mais deprimido ou bêbedo, Solipsas punha-se a filosofar ali pelo largo fronteiro à igreja de Santa Cruz: 
“A morte, vista pelos vivos, não existe. Os mortos, vistos pelos vivos, não estão bem mortos, uma vez que são recordados. A morte existe apenas no sentido de uma momentânea ausência, como a viagem de um tio para a Alemanha por umas dezenas de anos.” 
Sucedeu que, no meio da filosofação, deu de caras com o Adérito, um amigo antigo, já da remota escola primária do Loreto, tido por falecido há umas duas décadas. 
- Estás vivo?! – perguntou/exclamou o Solipsas, esbugalhando os óculos. 
O Adérito garantiu que sim e deu-lhe um abraço. Ofereceram-se logo as respetivas biografias (o Solipsas era reformado da CP, divorciado e só; o Adérito já era avô, tinha dois filhos em França, vivia em Braga com a mulher e trabalhava ainda nos correios - estava de passagem por Coimbra, por causa de um caroço nas costas, coisa ruim, mas que haveria de passar se Deus quisesse). 
A tarde foi passada a celebrar o grande reencontro, numa tasca pequenina, ali à rua da Sofia, que cheirava a fritos de muitos séculos. O Adérito só bebia água, o Solipsas dava-lhe no vinho, lamentando não ter telemóvel nem números para contactar outros amigos de antigamente. 
- Iam gostar de te ver, ó Adérito! É que andou mesmo por aí o boato de que tinhas morrido, acreditas? 
Muito conversaram: sobre a professora primária tão severa e histérica, e sobre as mulheres fatais daquele tempo, e sobre futebol, e sobre os que se casaram e se divorciaram ou enviuvaram, e sobre a família que tinham tido-que tinham-que deixaram de ter, e sobre a corrupção dos bancos. No final da tarde, o Adérito teve de regressar a Braga. O Solipsas mal se despediu, pois o vinho e a euforia tolhiam-lhe a língua, a visão, o equilíbrio, até o entendimento. O dono da tasca assegurou ao cliente sóbrio, com mal disfarçada impaciência: 
- A gente põe o seu amigo lá fora, não se preocupe. Isto às vezes acontece-lhe. 
No dia seguinte, o Solipsas acordou com o odor a café que vinha da cozinha da pensão. Rosa Luz, a empregada mais antiga, rosnou-lhe que tivesse vergonha, que visse o estado do quarto, e que pior estivera, antes de ela o limpar, o chão do corredor. O hóspede garantiu-lhe que não se lembrava sequer de ter regressado, e era sincero. 
Mas a luz da manhã retemperou-lhe o corpo e o ânimo. Saiu para a rua e foi deitando olhares indecentes às pernas de uma mulher que, como ele, esperava o autocarro para a baixa, a um par de namorados claramente alienados do planeta e respirando em uníssono, a um velho cão que cheirava o mijo de contemporâneos da sua espécie, a um cigano seu conhecido que limpava os sapatos às calças julgando que ninguém estava a ver, a dois polícias num carro parado e à espera de transgressões motorizadas. Até que chegou, enfim, à tasca onde encontrara o Adérito. Ainda por lá sentia, de certa forma, a presença do amigo, e por isso sorria, sem que os outros clientes percebessem a lógica daquele esgar zigomático. À roda de um garrafita de vinho e de um arroz de tomate com carapaus, voltou a filosofar, rabiscando depois a filosofação num caderninho azul que costumava trazer no bolso lateral do casaco: 
“A morte, vista pelos vivos, não existe. Os mortos, vistos pelos vivos, não estão bem mortos, uma vez que são recordados. A morte existe apenas no sentido de uma momentânea ausência, como a viagem de um tio para a Alemanha por umas dezenas de anos.” 
Passaram-se semanas. Numa qualquer tarde de Novembro, tocaram-lhe no ombro: era o Vasquinho, seu colega de escola e do futebol no União de Coimbra, criatura que de vez em quando tresvia no quotidiano urbano. O Vasquinho estava furioso com o árbitro do dia anterior e o Solipsas logo lhe atirou, pela milésima vez: 
- Por que raio és do Sporting? Muda para quem ganha, pá! 
Depois, lembrou-se do Adérito. 
- Sabes com quem estive há nem sequer um mês? Com o Adérito… O filho do Manuel Padeiro, dos Olivais, lembras-te? 
- Ah… - murmurou o Vasquinho. – Coitado. 
- Pois, eu sei… Tem um problemazito de saúde. Vive em Braga. 
- Já não – disse o Vasquinho. – Morreu na semana passada. Veio no Diário de Coimbra
Nessa noite, o Solipsas vomitou à entrada da pensão e fez um escândalo, a altas horas da madrugada, defendendo em altos berros a inexistência de Deus. 
Horas depois, já bem acordado e barbeado, veio ao seu quarto a dona da pensão. 
- Precisa de alguma coisa, dona Eugénia? 
Ela queria convidá-lo a procurar, tão depressa quanto possível, outro poiso para morar. 
- Tenho pena, senhor Solipsas. Mas você não tem emenda. 
- Tenho, tenho – garantiu-lhe o hóspede, fingindo que não estava assustado. 
Desceu, à tarde, para a baixa. Antes de passar pela tasca habitual, admirou as pombas da Portagem, as estudantes em formoso trânsito pela rua Visconde da Luz, a empregada da pastelaria, a tão linda Sé Velha, vista de cima, iluminada pelo Sol. À mesa, voltou a lembrar-se do Adérito e escreveu no caderninho azul que tirara no bolso: 
“O Adérito não está morto, segundo percebo. Vive lá por Braga, simplesmente.” 

Ribeira de Pena, 10 de Janeiro de 2019.
Joaquim Jorge Carvalho 
[Foto JJC]

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

A literatura do senhor Morris

Aí por 1963, os maiores tesouros da cidade de Cloudland eram um conjunto de livros muito antigos. Havia poucos, fruto quase todos de edições únicas, o que os tornava mais valiosos que ouro, terras, casas ou gado. O administrador da pequena biblioteca municipal tinha a incumbência de, entre as nove da manhã e as sete da tarde, os guardar, os conservar em bom estado e, nas raras ocasiões em que eram disponibilizados a professores ou estudantes, vigiar o modo como eram manuseados. Uma década antes, o funcionário tinha-se licenciado em engenharia civil com vinte e três anos de idade e desprezava as humanidades. Aos vetustos livros de matemática, de ciências naturais, de física, de química e de medicina, chamava livros do conhecimento. Aos centenários livros de histórias, de versos ou de teatro, que arrumava na prateleira inferior da única estante da sala, chamava livros de tretas. 
Certo dia, a biblioteca foi assaltada: levaram todos os livros e, no dia seguinte, fizeram chegar ao mayor um pedido de resgate. A verba pedida era altíssima e, se satisfizesse o pedido dos bandidos, o mayor teria de desistir de duas estradas novas e de um hospital que há pouco começara a ser edificado. O senhor Morris, o bibliotecário, foi também consultado sobre o que fazer. Com o sentido prático da engenharia, propôs que se pagasse apenas uma parcela do resgate, prescindindo-se de uma parte significativa dos livros sequestrados – “a literatura da treta”, cujo valor não se comparava, em sua opinião, com “a literatura do conhecimento”. Mais por motivos económicos do que literários, a câmara concordou com a proposta e, para surpresa da polícia e da administração pública, os ladrões também. Uma quantia razoável foi então depositada numa conta internacional, um caixote apareceu nas traseiras da sede dos correios - e os livros de matemática, de ciências naturais, de física, de química e de medicina regressaram, enfim, à biblioteca. 
Dir-se-ia: a vida regressou à normalidade. Mas não. O bibliotecário conheceu, no início da Primavera seguinte, uma senhora francesa, bolseira da Sorbonne, que viera aos Estados Unidos fazer uma investigação sobre os primeiros colonos (em particular, sobre a influência da cultura francesa na construção da identidade americana). À primeira conversa, o senhor Morris sentiu no peito uma espécie de dor, semelhante a um ataque cardíaco, um fogo no rosto e uma inexplicável felicidade pelo facto de estar na presença da estrangeira. Habituou-se a ouvi-la falar como se a sua voz se tratasse de uma música nova. Tornou-se dependente do seu perfume e admirador da sua pele muito branca. Começou a ver, em qualquer paisagem por onde andasse, marcas do seu rosto perfeito, do seu cabelo loiro, dos seus olhos azuis-verdes, do seu busto citrino. Em termos de engenharia civil, aparecera-lhe na alma um edifício grande e sólido, sem plano prévio, nem escala, nem infra-estruturas que se vissem, ainda por cima em trânsito para a condição de arranha-céus. O amor. 
A estrangeira achava o senhor Morris boa pessoa, mas não o amava. Em Paris, estava outro homem, médico do nariz, dos ouvidos e da garganta, a quem entregara há muito o coração. O bibliotecário tentou aproveitar o gosto da mulher pelas ciências e exibiu, sempre que pôde, nas conversas com a estrangeira, o seu conhecimento de toda a antiquíssima literatura que guardava. A interlocutora ouvia-o, interessada, mas sem um frémito que revelasse uma migalha sequer de correspondência amorosa. 
Morris foi dando em doido. A vinte e cinco de Junho, data de aniversário da amada, quis fazer-lhe uma surpresa. No dia anterior, adormecera na biblioteca, no final de um choro romântico e de duas literais garrafas de vinho argentino. Acordado, fizera a possível higiene matinal, endireitara como pudera a indumentária e dera um toque ao cabelo, ciente de que, pelas nove horas e meia, apareceria a deusa aniversariante. Ela tinha-lhe dito, certo dia, que gostava de receber flores. Naturalmente, o bibliotecário, queria, naquela ocasião, oferecer-lhe flores. Sem tempo para sair, teve uma inspiração maluca: foi-se à estante onde estavam os livros e foi rasgando folhas e mais folhas, com as quais esculpiu pétalas, troncos, ramos. 
O resultado, para além da destruição de trinta e quatro volumes muito antigos de matemática, de ciências naturais, de física, de química e de medicina, foi que a sala principal da biblioteca se tornou numa espécie de jardim em papel, com flores espalhadas por mesas, estantes e cadeiras. Esta mistura de páginas de uns livros com outros resultou em sociedades de palavras verdadeiramente improváveis e surpreendentes: por exemplo, numa das rosas fabricadas, lia-se “equação de energia cardiovascular”; noutra, lia-se “estrela venosa por efeito de combustão do olhar humano”; noutra ainda, lia-se “raiz quadrada da fauna e da flora do universo”. Etc. 
- Não sabia que eras um poeta – disse a estrangeira, beijando-o, esquecendo-se escandalosamente do seu otorrinolaringologista francês. 
- Nem eu – confessou o bibliotecário. – Até chegares, era só engenheiro civil. Isto foi uma coisa que me aconteceu. 
De modo que a literatura feita de versos, de histórias e de peças de teatro, roubada ao segundo parágrafo por marginais (e desprezada pelo município), regressou assim à biblioteca da cidade, em forma de flores. Em forma de amor. 

Ribeira de Pena, 09 de Janeiro de 2019. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em https://www.antiguidadeslisboa.pt.]

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Pretérito menos que perfeito


Nos iniciados e nos juvenis, o Jota era uma razoável esperança. Na categoria de juniores, era já um dos melhores jogadores da equipa. Driblava como um esquiador, corria como uma gazela, lutava como um guerreiro. “Aquele talvez venha a dar futebolista!”, vaticinavam os adeptos do União de Coimbra ao senhor José, o Pai daquele advérbio de dúvida. 
Com o prestígio, veio a vaidade. O Jota começou a guardar a bola só para si, a regatear esforços na recuperação defensiva, a exigir privilégios especiais (marcando os cantos e os livres indiretos), a exibir mesmo trejeitos de vedeta cinematográfica. 
Às tantas, o próprio treinador, seu amigo verdadeiro, viu-se obrigado a corrigir-lhe o posicionamento tático e a displicência competitiva. Foi a uma quinta-feira, e o Jota reagiu aos reparos com arrogância: 
- Bolas! Só me vê a mim?! 
O treinador chamou-o à parte e afiançou-lhe, gravemente: 
- Eu só chamo à atenção jogadores que ainda não saibam tudo sobre o jogo e tenham a possibilidade de melhorar. Quando eu achar que já sabes tudo ou que não conseguirás melhorar, deixo de te aborrecer. Compreendes? 
O rapaz ficou em silêncio, remoendo as palavras como um medicamento. Depois, cumpriu a ordem de correr à volta do campo durante uma hora, enquanto os outros jogadores se divertiam no treino de conjunto, divididos em duas equipas. 
Uns vinte anos depois, durante uma aula de Português, o professor Jota lembrou a um aluno a necessidade de melhorar a sua atitude face à escola. À interpelação do director de turma, o discente reagiu assim: 
- Bolas! Só me vê a mim?! 
E o docente transmitiu-lhe a lição do mister Raul Pinho, concluindo: 
- Se eu deixar de te aborrecer, é sinal de que já és perfeito, ou então de que não vale a pena tentar melhorar-te porque não serves para mais. 
O aluno focou em silêncio. Sabei que o silêncio é, às vezes, a banda sonora da aprendizagem. 

Ribeira de Pena, 08 de Janeiro de 2019. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[Na imagem, foto do autor, então capitão dos juniores do União de Coimbra e já recuperado da vaidade supra-narrada.]

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

O pássaro académico

Um jovem universitário, muito amado pelos pais, deu em sentir-se, ao segundo ano da faculdade, melhor do que toda a gente, a começar pela gente lá de casa. Chamava boçal ao irmão, venal ao pai e simples (no sentido de coitadinha) à mãe. O pai do universitário foi o primeiro a detectar estas doutorices no filho mais novo. Certo dia, aconteceu na casa do agregado, a um Sábado, que o universitário se esqueceu de alimentar o canário, ave trazida por ele próprio e oferta de uma namorada francesa. 
O pai, que tinha vindo da oficina para almoçar, apercebeu-se da fome do pássaro e perguntou: 
- José, já deste comida ao bicho? 
O interpelado suspirou, muito blasé, atento ao telemóvel e não respondeu. 
O pai voltou à carga, já menos calmo: 
- O animal precisa de comer e é tua obrigação alimentá-lo. Deixa lá o telemóvel por um momento e dá-lhe comida. 
Respondeu o filho, espreguiçando-se e nem se dignando a mirar o patriarca: 
- Não é um telemóvel que se diz. É iphone. E, já agora, quando te referires ao meu canário, deves chamar-lhe Tempo. Foi esse o nome que eu e a Hélène lhe pusemos. 
O pai foi à gaiola do canário, abriu a porta e a ave fugiu. O filho ficou sem palavras, por segundos, asfixiado pela indignação. Finalmente, explodiu: 
- Que raio fizeste tu, pai? 
O pai nem o mirou enquanto lhe respondia: 
- Ó filho, sabem bem que o Tempo voa. 

Ribeira de Pena, 06 de Janeiro de 2019. 
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em https://www.pt.depositphotos.com.]