De súbito, atiram-nos para cima um consabido tesouro: o tempo. Estamos em casa e o fascismo dos horários sente-se menos.
Se, por uns segundos, uns minutos, umas horas, escondidos das notícias, escaparmos à obsessiva presença do maldito vírus, damos por nós a cumprir tarefas que há muito adiáramos.
Se por alguns momentos, interrompermos a angústia de pensar na Mãe e na Irmã fragilizadas e à mercê do que aí vem (e nas famílias dos outros, sujeitas à mesma ameaça que sobre nós impende), damos por nós a pensar em nós e nos outros.
Se por uns instantes, nos abstrairmos da momentânea falta de comida, de medicamentos, de detergente e de papel, damos por nós a pensar no que a vida significa e é.
Hoje, enquanto preparava o café e o pão de cada manhã, após a abrir a janela que devolve a luz à minha cozinha, lembrei-me do Mestre João, meu Sogro. Já há dez anos que o perdemos. Ainda por aqui andam, contudo, as suas lições, a sua bondade, o seu bom humor e o seu sorriso teimosamente optimista. Recordo-me de o ouvir louvando-agradecendo cada novo dia, espantando-se com a beleza de uma paisagem, glorificando a aragem fresca do (seu) Sítio do Piquinho ou celebrando o milagre das novas tecnologias.
Em 2004, quando certo tsunami gigantesco encheu de terror e de desespero a humanidade inteira, ele estava em Coimbra, em minha casa, no meu sofá. Vi como, de lágrimas nos olhos, lamentava a sorte de milhares de homens e mulheres como fossem seus vizinhos ou familiares. E de, depois, numa retórica feita mais de coração que de catecismos, falar de esperança e do que o mundo tinha de fazer para ajudar os necessitados.
Dava-me jeito, agora como sempre, ter o Mestre João ao pé de nós, guiando-nos para o Sol.
Coimbra, 21 de Março de 2020.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto foi tirada há mais de vinte anos (em Machico, Madeira). Foi há bocadinho.]