Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

segunda-feira, 26 de julho de 2021

4. Tarzan & Sidónio


Aí pelos 40 anos, Sidónio Sargento deu em embirrar com os animais de estimação, particularmente com cães e gatos. Custava-lhe ver os familiares próximos sujeitos à tirania da bicharada, que enchia de pêlos os sofás e o chão, que miava ou gania-ladrava-uivava por mil motivos, que urinava sobre as plantas e os tapetes, que destruía colchas e cortinados seculares cheios de história. 
O pior foi quando se apercebeu de que a rua onde vivia estava pejada destes animais, sobretudo de cães, tornando impossível – de manhã cedo até altas horas da noite – um pouco de sossego, tal o ruído dessa numerosa matilha sitiando o silêncio, ladrando-ganindo-uivando, uivando-ladrando-ganindo, sem pausa ou misericórdia. O seu ódio desviou-se para os donos das feras, que aprisionavam os bichos em minúsculos apartamentos e – vergonha maior – nas tão reduzidas varandas dos prédios económicos, condenando-os a uma solidão de dias inteiros e cruéis. 
Quando morreu a sogra, a filha herdou alguma louça, uma mesa de cozinha e, raios partissem a sorte, um cão chamado Tarzan. O senhor Sidónio, no imediato, engoliu este infortúnio por respeito à dor lutuosa da esposa. Na semana seguinte, porém, começou a murmurar a sua infelicidade e a sua revolta. Avisou a mulher para a provável iminência de urina espalhada pela casa (e de outras escatologias piores). Essa ominosidade acabou por perturbar a companheira: 
- Achas? Ai, homem, se isso acontecer, levo-o para a casa do meu tio Ernesto. Aquele que vive em Viseu…
O marido disfarçou a sua satisfação, desejando que o mijo canino aparecesse logo nesse dia. Mas o Tarzan vinha bem educado e esperava pacientemente pela manhã. Só se aliviava durante o passeio de dez minutos, entre a casa e um pequeno jardim ali a cinquenta metros. De modo que a irritação do homem cresceu e, à falta de coisa mais substancial, enumerava outros inconvenientes: o cheiro do cão, os pêlos que nenhuma limpeza evitava, aquele hábito de ladrar contra os gatos ou humanos que passavam na rua. Percebeu, com amargura, que tudo aquilo eram, para a esposa, pormenores facilmente tolerados. E teve, enfim, uma ideia.
À noite, quando a mulher já dormitava frente à televisão, escapuliu-se até à cozinha e urinou num canto, mesmo ao lado do lava-louças. No dia seguinte, fez o mesmo no corredor. Mais tarde, no chão do quarto e até sobre a colcha da cama conjugal. 
A mulher ralhava com o cão e, de viés, apreciava a paciência do marido, que apenas fechava tristemente os olhos, como um mártir capaz de tudo sofrer pela harmonia do lar. Finalmente, o animal foi entregue ao tio Ernesto, que afinal morava em Vildemoinhos e, para sorte de todos, era proprietário de um enorme quintal à volta de sua casa. O velhote aceitou logo o animal, pois estava habituado à presença – numerosa e variada – de bicharada. 

Aos oitenta anos, o senhor Sidónio Sargento queixou-se à filha da vingança que o cão da sogra lhe reservara: sustentava que o Tarzan lhe mijava a roupa, os sapatos, os lençóis da cama, o chão. A filha dizia-lhe que não e que aquilo era confusão da sua cabeça. E ele: 
- Para cúmulo, a tua mãe não diz nada, sabias?
Nessa tarde, a filha suspirou mais profundamente, também ela já velha.
- A mãe já morreu, paizinho. E o Tarzan também, está claro.
O velho, sempre pronto a indignar-se com todos, ficou dessa vez em silêncio. Mas, pouco depois, voltou ao assunto, apontando para a poça de urina sob os seus pés:
- Ai é? E isto?
A filha chamou a empregada do Lar de Nossa Senhora das Aflições.
- Ó dona Maria, desculpe. O meu pai descuidou-se outra vez.
O senhor Sidónio observou, por momentos, a empregada limpando o chão. A filha conduziu-o para a casa de banho, incapaz de evitar um suspiro longo e sonoro, que misturava o cansaço dos dias com alguma tristeza e alguma impaciência (involuntárias ambas). Ao velhote, aquele som pareceu um uivo ou um ganido.

Coimbra, 19-07-2021.
Joaquim Jorge Carvalho
[Na imagem, aparece a Dara, a nossa cadela (já falecida).]

sábado, 17 de julho de 2021

Jeremias & Jerimum

 

3.

A esposa do senhor Jeremias Magala estranhou o facto de, no bolso interior do casaco esponsal, ter encontrado pevides cruas, ainda por secar. A mulher sofria moderadamente ciúmes, mas a descoberta pareceu acender-lhe demenciais suspeitas de alguma patuscada com amásias vorazes e amorais. Ao fim do dia, quando o marido chegou do trabalho na seguradora, ela gritou-lhe, esperneando-bracejando, a acusação que mal contivera no peito durante cinco ou seis horas.

O homem negou a sugestão “sem sentido e sem lógica - aliás, estúpida” (sic) da sua senhora. E num esforço de ironia, acompanhada de um esgar que era para ser sorriso, atirou: 
- Encontras pevides no bolso do meu casaco e concluis que se trata de um caso com uma mulher!

A esposa baixou a crista, sobretudo depois de o companheiro ter jurado pelos filhos. Contrafeita, acabou por pedir-lhe desculpa e o cônjuge fingiu-se amuado. (Na verdade, estava satisfeito e aliviado, não imaginais porquê.)

Deitaram-se logo a seguir ao jantar. Ele levou tempo a adormecer: na sua cabeça, bailavam ainda imagens escandalosas do seu último encontro com certa abóbora maravilhosa, que ele em boa hora salvara do Halloween.

Coimbra, 16 de Julho de 2021.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em lifestyle.sapo.pt.]

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Cão e galinha

 



2.

Ao terceiro dia da morte do dono, o cão desistiu de chorar. A fome deveio mais forte do que a tristeza e ele deitou-se à caça, farejando pombas ingénuas ou galinhas distraídas. Teve azar: Rodrigo o dono do galinheiro que havia frente à casa do falecido dono, não lhe perdoou o ataque brutal à única pedrês da criação (fiel fornecedora do ovo nosso de cada dia) e atirou-lhe um tiro de espingarda, à queima-roupa. A rua soube de tudo, quase em directo, mas não ligou muito ao caso.

Coimbra, 13 de Julho de 2021.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em super.abril.com.br.]

Maluco e Sol

 



1.

O maluco da rua atirou uma pedrada ao Sol. O Sol, farto de malucos, pregou-lhe com uma insolação. O maluco esteve a morrer, mas recuperou milagrosamente. Aliás, deixou de ser maluco: trabalha para a câmara, é dirigente do clube local e noivou uma moça bonita, que trabalha na Padaria Central. O Sol, esse, está na mesma.

Coimbra, 13 de Julho de 2021. 
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (evocando Chaplin) foi colhida, com a devida vénia, em publico.pt/2014/03/21.]

domingo, 4 de julho de 2021

Domingo & sombra

 



1
Da minha janela vê-se o Domingo:
Um cão antigo atravessa a rua
Um imigrante fala ao telemóvel
Dois reformados gemem-se queixas

2
Subitamente some-se o Sol
E o quase nada disto devém nada.

3
Bocejo sobre a vila adormecida
Cansado da inércia própria e alheia


4
Apetece-me agora outro lugar
Ver para lá do que se vê –
Desesperado, zappo na tv
E busco algum cenário com mar.


Ribeira de Pena, 04 de Julho de 2021.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC]

sábado, 3 de julho de 2021

Metáfora em forma de cápsulas

Depositamos as cápsulas de café num recipiente de vidro e acontece sentirmos, por dentro da alma, um sorriso crescendo: é a memória e a antecipação do prazer. (Quem não for viciado em café, notai, escusa de ler, pois nada do que se segue fará, nesse caso, sentido.)
Regressemos às cápsulas. Às vezes, são dezasseis que ali colocamos; outras, dez. Depende, já se vê, do pacotinho cartonado que adquirimos antes. Serão consumidas em, no máximo, dez dias, quiçá menos.
Calha doer-nos, ao retirar do frasco uma (e outra, outra e outra) cápsula, a presciência do vazio futuro. Sim, haverá um tempo em que o futuro estará sem cápsulas. Dito de outro modo: haverá um tempo sem direito ao prazer cafeínico que tomamos, regra geral, por garantido.
Chegamos a uma idade em que tendemos a ver na mais chã das circunstâncias uma metáfora profunda sobre esta coisa triste que nasce connosco: a mortalidade. Isso me sucedeu, há pouco tempo, na minha cozinha, ao olhar para a penúria circunstancial de cápsulas de café.
Compramos mais uma caixa (talvez duas, para prevenir neuras futuras). Assim pomos fim, por algum tempo, ao perigo do fim. De algum modo, também essa possibilidade existe, até certo ponto, na metáfora sobre as nossas vidas: podemos adiar o ocaso com uma operação, um comprimido, um bypass coronário.
Premonição prosaica: um homem acordará, um dia, e descobrirá que se acabaram as cápsulas de café.
Ponte metafórica: um dia, esgotam-se os últimos segundos do frasco vital e não acordamos mais.
A parte boa disto foi que desenhei este texto enquanto tomava o primeiro café do dia, sabendo que ainda há onze cápsulas para consumir. Tanta imortalidade, irmãos!

Vila Real, 03 de Junho de 2021.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em https://pt.vecteezy.com.]