Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sábado, 3 de julho de 2021

Metáfora em forma de cápsulas

Depositamos as cápsulas de café num recipiente de vidro e acontece sentirmos, por dentro da alma, um sorriso crescendo: é a memória e a antecipação do prazer. (Quem não for viciado em café, notai, escusa de ler, pois nada do que se segue fará, nesse caso, sentido.)
Regressemos às cápsulas. Às vezes, são dezasseis que ali colocamos; outras, dez. Depende, já se vê, do pacotinho cartonado que adquirimos antes. Serão consumidas em, no máximo, dez dias, quiçá menos.
Calha doer-nos, ao retirar do frasco uma (e outra, outra e outra) cápsula, a presciência do vazio futuro. Sim, haverá um tempo em que o futuro estará sem cápsulas. Dito de outro modo: haverá um tempo sem direito ao prazer cafeínico que tomamos, regra geral, por garantido.
Chegamos a uma idade em que tendemos a ver na mais chã das circunstâncias uma metáfora profunda sobre esta coisa triste que nasce connosco: a mortalidade. Isso me sucedeu, há pouco tempo, na minha cozinha, ao olhar para a penúria circunstancial de cápsulas de café.
Compramos mais uma caixa (talvez duas, para prevenir neuras futuras). Assim pomos fim, por algum tempo, ao perigo do fim. De algum modo, também essa possibilidade existe, até certo ponto, na metáfora sobre as nossas vidas: podemos adiar o ocaso com uma operação, um comprimido, um bypass coronário.
Premonição prosaica: um homem acordará, um dia, e descobrirá que se acabaram as cápsulas de café.
Ponte metafórica: um dia, esgotam-se os últimos segundos do frasco vital e não acordamos mais.
A parte boa disto foi que desenhei este texto enquanto tomava o primeiro café do dia, sabendo que ainda há onze cápsulas para consumir. Tanta imortalidade, irmãos!

Vila Real, 03 de Junho de 2021.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em https://pt.vecteezy.com.]

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