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segunda-feira, 28 de junho de 2021

Choro de homem



Um homem olha para a cama vazia da sua mãe e chora. Ela está ainda, para ser rigoroso, razoavelmente viva, mas passou a dormir numa outra casa. A nova casa providencia-lhe cuidados de saúde, de higiene, de alimentação, de repouso e de vigilância que, se continuasse na sua própria casa, não teria. O homem lamenta que a vida seja assim. Apesar de não ter culpa de ser apenas um homem, sente remorsos e interroga-se sobre o que poderia ainda ter feito para evitar este desenlace trágico. A mãe, frágil de corpo e esvaziada de memória, não sabe que lhe aconteceu esta mudança. Os médicos e os vizinhos louvam “a decisão” da família. O homem chora, derrotado, de frente para a cama sem a mãe. Murmura-lhe um pedido de perdão. A esposa rega as poucas flores que, no exterior da casa, junto à porta, resistiam num vaso antigo. 

O homem recorda-se de um conto de Hemingway, “Indian camp”. Perante a cruel novidade da morte, um rapaz, o filho de um médico, jura a si mesmo que nunca há-de morrer. Pensa (de cor): “He decided that he would never die.” É uma “decisão” patética da criança, que é suficientemente ingénua para ignorar a inevitável morte a haver, ou que está tão consciente do fim que, em negação aparente, prefere acreditar na imortalidade. Em ambos os casos, aquela é uma personagem digna da piedade leitora.

O homem, ao pensar na mãe, parece uma criança: não suporta a distância, pede-lhe mentalmente perdão por crimes que não são senão imputáveis à velhice e à morte. Passado um ano, o choro do  triste permanece. Às vezes, a mulher apercebe-se de que o marido continua a sofrer, como uma criança, a falta da mãe. À porta de casa da mãe do homem, um ano depois de tudo ter acontecido, há um vaso sem vestígio de flores.

O homem, quando leu aquele conto de Hemingway, teve pena do rapaz que se recusava a aceitar a morte. Agora, sobre o desaparecimento, aos poucos, da mãe, o homem decide que, no que depender de si, ela nunca lhe morrerá.


Coimbra, 27 de Junho de 2021.
Joaquim Jorge Carvalho

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