Bússola do Muito Mar

Endereço para achamento

jjorgecarvalho@hotmail.com

Número de Ondas

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Fósforo (variação de "carpe diem")



De repente, de repente
É já morta é já perdida
A juventude da gente
A formosura da gente…

E a melhor lição de vida
Que a vida dá simplesmente
É vivermos o presente
Por não haver outra vida.

 Ribeira de Pena, 30 de Junho de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.mdemulher.abril.com. Este poema foi escrito no contexto da peça “Call Center Literário” (Ribeira de Pena, 30-06-2014). A peça foi apresentada em Setembro de 2014, no Auditório Municipal de Ribeira de Pena, durante as II Jornadas Camilianas.]

Livro



Livro fechado esperando
Leitores que o salvem do Nada –
Vive e brilha apenas quando
O vemos e, nele entrando,
Um encontro lhe acontece:

Pois é o livro um amigo
Que se o leitor o merece
Ouve bem falar consigo.

Num livro fechado habita
O sonho de um escritor
E entre o leitor e a escrita
Há uma história de amor!


Ribeira de Pena, 30 de Junho de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.tulipa2.wordpress.com. Este poema foi escrito no contexto da peça “Call Center Literário” (Ribeira de Pena, 30-06-2014). A peça foi apresentada em Setembro de 2014, no Auditório Municipal de Ribeira de Pena, durante as II Jornadas Camilianas.]

Ferida lida



É maior o amor que a vida
Porque esta acaba e aquele não.
Mas se a vida
Ao amor é reunida
Fica igual ao tempo o coração:
Amor - ferida.
Amor - de perdição.

Ribeira de Pena, 30 de Junho de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este poema foi escrito no contexto da peça “Call Center Literário” (Ribeira de Pena, 30-06-2014). A peça foi apresentada em Setembro de 2014, no Auditório Municipal de Ribeira de Pena, durante as II Jornadas Camilianas.]

Pátria ou assim



Na minha pátria desejo
 
Um rio vivo de sossego

(Poderia ser o Tejo

Mas eu prefiro o Mondego) –
 

Minha pátria é um não-lugar

Feito de capricho puro:

Na terra sonho com mar

No mar mais terra procuro.

 
Minha pátria é outro lado:

A mãe (tão nova!) na lida

E o pai cantando o fado

Durante o banho da vida.
 
 
Coimbra, 23 de Novembro de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida na net e foi já utilizada neste blogue, em Janeiro de 2012. Com a devida vénia, naturalmente.]

Poesia (definição num verso)


Poesia é dar a palavra à palavra.

Arco de Baúlhe, 24 de Novembro de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.coisautil.pt.]

terça-feira, 4 de novembro de 2014

In Finitude


 
O velho saboreia a maçã

E o sol que o consola na tarde linda –

Não já o sol puro da manhã

Mas sol ainda.

 
Depois cai sobre as casas o ocaso

E há em vez do sol filosofia:

Vai-se suspirando em passo raso

O velho já sem fruto, já sem dia.

 
Vila Real, 01 de Novembro de 2014.

Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.br.123rf.com.]

O que falta para tudo estar certo


 
Perguntas-me a razão desta tristeza

Que nunca bem me desaparece, só

Se esconde e adia, às vezes, quando há sol.

Perguntas-me o que me falta

Para enfim sermos inteiramente felizes

(Perguntas-me se é por não ser já Verão).

Digo-te que também é isso, mas não

Apenas isso, não sequer essencialmente isso.

Era preciso, meu amor, nunca morrermos

Para tudo estar certo.

 

Vila Real, 01 de Novembro de 2014.

Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.a-educologia.blogspot.com.]

Flutuação com lábios


Sorris e morre a lei da gravidade
(É por sorrires que nasce esta leveza).
É tão mais leve a realidade
Quando há beleza.

 

Vila Real, 01 de Novembro de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem faz parte da maravilhosa saga de Calvin & Hobbes, do genial Bill Watterson. Com a devida vénia.]

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Tempo todo



Vivem connosco os nossos vivos e os nossos mortos. Todos em nós vivos. O meu pai gostava de falar das mulheres com um sorriso maroto nos lábios operários. Que diria ele desta senhora muito vistosa que atravessa a rua, como se desfilasse, cheia de curvas e de promessas nos olhos e na boca pequenina? O meu amigo Conceição gostava de falar de futebol ridicularizando, a cada passo, as certezas absolutas de jogadores, treinadores, directores. Que diria ele do anafado comentador que verbera, na televisão, quem ousa brincar com o técnico do seu clube? O meu sogro gostava de falar de Deus e da sua ideia (muito simples) de Igreja. Que diria ele de quem ataca medievalmente este papa novo que propõe a tolerância e o sorriso onde têm residido, até agora, o sectarismo e a severidade?
A minha mãe gosta de falar do passado. Eu também. Porque, perceba-se, é tudo presente.

Cabeceiras de Basto, 30 de Outubro de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem é do filme Adeus, pai, de Luís Filipe Rocha (1996). Com a devida vénia.]

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Discurso sobre a ideia delicada de resistir



Pode suceder que um professor leve três horas a preparar uma aula, seleccionando textos, filmes e canções, fabricando guiões e fichas de análise, arquitectando exposições e debates, conciliando as dimensões do esforço e do prazer - e que, no dia seguinte, os seus alunos adormeçam nas aulas, ou se agridam, ou arrotem, ou exibam orgulhosas flatulências que fazem rir os colegas.
Pode suceder que um professor hesite, às tantas, entre persistir ou desistir.
Eu percebo muito bem que tenha de haver na Escola espaço para todos. Defendo-o até. Mas não pode deixar de haver, por outro lado, espaço para a Escola dentro dos alunos que a frequentam. Dentro de, sublinho, todos os alunos que a frequentam. Chame-se isso respeito ou, de forma mais lata e elementar, civilização.
Tenho dito.

Ribeira de Pena, 22 de Outubro de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.altamiroborges.blogspot.com.]

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Beijo solar

Acordo ao som déspota do telemóvel-despertador. Custa-me sempre abandonar aquela morna conjugalidade do leito, mas saio. Sofro, corredor afora, as primeiras lambadas de frio. Espreito o exterior, da janela sobranceira à vila: algumas pessoas cruzam escuramente a rua, pontuando o silêncio do som funcionário dos seus passos. Escolho a roupa, dirijo-me à casa de banho, faço a higiene habitual, ofereço-me cinco minutos de brevíssimo prazer sob o chuveiro quente. Visto-me a olhar, já preocupado, para as horas. Beijo a MP, sigo para a cozinha, mordisco (nem sempre) uma fatia de pão e saio escadas abaixo, com a pasta pesando-me já na mão direita. Entro no carro, sintonizo a TSF, indigno-me com o orçamento para 2015, preparo o dinheiro da portagem. São oito horas e vinte e três minutos, faltam dois quilómetros para chegar ao Arco. Suspiro, quase em desespero: repetição, rotina, cansaço, tédio. Porque, penso, este é um dia igual aos anteriores e, muito provavelmente, aos seguintes.
Mas eis que uma carícia de sol me invade o habitáculo, vinda (creio) do lado esquerdo (nascente?), e que o meu coração decide desenhar-me, na dura boca, um sorriso doce. Um anjo qualquer diz-me ao ouvido: "É tão bom estar vivo, Joaquim Jorge! Olha o Sol. Vê que nenhum dia é igual a outro..."
Eu aceito. Sigo para a lida, mais animado. Amanhã é sexta-feira - joga o Real Madrid com o Levante e o (meu) Sporting com o Porto.
De modo que perdoo, por enquanto aos deuses, que ainda não seja Verão.

Arco de Baúlhe, 17 de Outubro de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://welovemotogeo.com.]

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Ditosa pátria minha estrada


A minha viagem começa nos olhos
E é mais do coração que do alcatrão.

Vou de carro, voo-me fora do carro
E sou mais de asas que de casas.

A minha viagem vai para lá do volante
E há sempre mais mar em mim que lar.

Fecho a porta, abro o mundo inteiro
E canto-me mais a vida que a lida.

A minha viagem é muito mais do que uma viagem.

Cabeceiras de Basto, 15 de Outubro de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.flick.br.com.]

domingo, 12 de outubro de 2014

"Je déteste l'école"


Passou recentemente pela RTP2 um belo documentário sobre certo projecto que, em França, se está fazendo sob a égide do Ministério da Educação gaulês. Trata-se, em resumo, da tentativa de segurar na escola aqueles alunos que, no ensino regular, foram colecionando reprovações, processos disciplinares, suspensões, desistências. Tanto quanto percebi, os alunos – enquadrados em turmas muito reduzidas – têm aulas em carpintarias, ateliês de arte, oficinas de chapa, mecânica ou pintura, empresas de agropecuária, escolas de circo. Pontualmente, têm aulas de língua materna (leitura, sobretudo). Uma vez por semana, reúnem-se com os formadores e fazem a sua autoavaliação – que é, logo na hora, criticamente monitorizada pelo corpo docente.
O projecto é para durar cinco anos, após o que se procederá à sua avaliação pelos governantes. Coisa séria, portanto.
Por cá, sei de turmas com duas dezenas de alunos, em boa parte semelhantes aos discentes que vi no programa francês. Frequentam cursos de educação e formação, cursos profissionais, cursos vocacionais. Mas os nossos alunos têm aulas tradicionais, fundamentalmente semelhantes às que são leccionadas no ensino convencional, regular. Morrem de tédio, cumprem pena, revoltam-se mais ou menos agressivamente. Que lhes fazemos? Damos-lhes mais do mesmo, à espera quiçá que a paixão nasça do desespero ou do cansaço.
Eu não detesto a escola. Nunca detestarei a escola. O que “detesto”, para usar o verbo do título deste documentário, é a Escola – assim mesmo, com maiúscula - não ser capaz de se reinventar na medida do necessário (e, vá lá, do possível).

Coimbra, 12 de Outubro de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem faz parte da maravilhosa bibliografia de Bill Watterson - Calvin & Hobbes, naturalmente. Com a devida vénia...]

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Casa Sonetone (não Sonotone)


- Boa tarde. É da casa Sonotone?
- Não, minha senhora. Aqui fala da casa Sonetone.
- A sério? Devo ter visto mal na lista telefónica…
- Mal não direi, minha senhora. Viu talvez algo diferente do que esperava.
- Mas qual é o vosso ramo de negócio, afinal?
- A nossa especialidade, minha senhora, são sonetos.
- Ah, então é mesmo engano, porque eu não preciso nem hei-de precisar …
- Minha senhora, não me leve a mal o atrevimento, mas nisto de sonetos é melhor não os pôr de lado antes de os conhecer.
- Pois sim, mas eu queria era falar com um especialista em audição… Está ouvir-me?
- Muito bem, minha senhora. E tem sido um prazer, garanto-lhe…
- Obrigada. Mas não vale a pena continuar a conversa.
- Vale sempre a pena, minha senhora.
- Não me parece. Os senhores aí não tratam da surdez de ouvidos, pois não?
- Não, de facto. Tratamos é da surdez de olvidos. De olvidos, não se esqueça.
- Não me olvidarei. Se vier a precisar de ajuda nessa área, contacto-vos…
- Agradeço, minha senhora. Verá que, se vier a ser nossa cliente, não se arrependerá.
- Veremos. Sabe que, na casa Sonotone, há senhores a explicar a doença à pessoa.
- Nós, na Sonetone, temos Pessoa a explicar a doença aos senhores.
- Mas também oferecem aparelhos como na casa Sonotone?
- Nós, na casa Sonetone, oferecemos amparelhos.
- Amparelhos?...
- Sim. Aparelhos para o amparo.
- Interessante… E funcionam a electricidade?
- Funcionam à base de luz, minha senhora.
- E se não houver luz?
- Há sempre luz garantida nos sonetos. Vai incorporada de origem.
- Pois bem, está a convencer-me…Vou encomendar um soneto…
- Minha senhora, será um prazer. Chamo a sua atenção, já agora, para uma promoção que estamos a fazer: na compra de três sonetos, acumula uma quadra ou dois tercetos no nosso cartão de pontos. Está interessada?
- Estou, sim. Espero que seja como o senhor diz…
- Verá que vai ficar feliz!
- Ah, que engraçado! Respondeu-me com uma rima…

- Pois respondi. É oferta da casa. Com licença…

Ribeira de Pena, 08 de Outubro de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este texto surgiu-me durante a viagem entre o Arco e Ribeira de Pena, depois de o Daniel Abrunheiro me falar do fabrico recente de mais um (seu) soneto. A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.cuidarte.com.]

Imortalidade de amigo (a propósito de uma batata com a forma de um coração)


Tenho um amigo que deixou aparentemente de aparecer nas ruas por onde os meus passos andam. Diz-se que morreu. Mas eu vejo-o todos os dias, ouço-o todos os dias, sinto-o vivamente a cada instante.
De modo que, vamos lá a ver se nos entendemos, ele morreu coisa nenhuma. Anda comigo para sempre. Para sempre é até eu existir.
Não perceber isto (ou falar do número da sua campa, ou falar da viuvez e orfandade dos dias seguintes a não sei quê que não consigo dizer) redunda em desespero e choro. Já me aconteceu. Mas sucede cada vez menos porque eu preciso de não dar em doido, porque eu preciso de trabalhar, porque eu preciso de seguir em frente – e porque o meu amigo (não esquecer, jamais esquecer) está vivo.
Estás vivo, pá.

Cabeceiras de Basto, 07 de Outubro de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho

[Foto da VL, que descobriu na nossa cozinha, em Coimbra, certa batata com a forma de um coração.]

sábado, 4 de outubro de 2014

Lunar


Quando, em 1969, perguntaram à mãe de Nel Armstrong se o feito do filho a surpreendera, ela deve ter dito:
- Não, senhor. Não, senhor. Porque aquele rapaz, desde que me lembro, andou sempre na lua.

Coimbra, já 04 de Outubro de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.telegraph.co.uk.]

Lírico-cardiograma


O coração não precisa de carteira. Paga tudo em forma de amor - e, na maioria do casos, ainda recebe troco.

Ribeira de Pena, 03 de Outubro de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.sidneyrezende.com.]

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Vidas outras



Para sobreviver, com alguma sanidade mental, aos dias mais pesados, um professor tem de inscrever, na sua cabeça e na sua alma, duas ideias básicas, só aparentemente contraditórias:
a) a do optimismo humanista,  que garante valer a sempre pena o esforço, o empenho, a esperança;
b) a do pragmatismo burguês, que reduz o exercício da profissão à sua expressão mínima, a de um mero suporte económico-financeiro.
A primeira destas ideias funciona como pressuposto para a eficácia da atividade docente. Se não acreditarmos no que fazemos (no sentido dos nossos gestos, no alcance dos nossos gestos), não conseguimos, como ensinou Torga, salvar seja o que for. Mais: não conceber que o nosso ofício é capaz, de facto, de operar milagres, ainda que subtis, ainda que pequeninos, seria entender a generosidade de cada uma das nossas aulas como um triste, banal e patético capricho. Seria resignarmo-nos. Seria desistirmos. Ora, o trabalho faz-se, na Escola como na vida em geral, com os persistentes, os resistentes.
Questão: e quando tudo corre mal? E quando a realidade nos ataca, nos fere, nos desanima?
Resposta: alínea b). 
A nossa vida não pode circunscrever-se à profissão. Tem de haver, em cada um de nós, para cada um de nós, a possibilidade de outros mundos. De outras vidas.
Não digo que a profissão não seja uma parte importante da vida. No meu caso, é uma parte essencial. Mas não é única, muito longe disso. De vez em quando, é preciso desligar como um médico que, despindo a bata, suspende por horas a angústia das situações-limite, de vida quase morte, de morte quase vida. Como nós, o médico precisa de respirar.
A felicidade também compreende a vida (as vidas) que há para lá ou para cá do ofício diário. Falo de leituras, viagens, conversas, família, amigos, futebol, presunto, cerveja, café, televisão, cinema, música, praia. Falo de dormir. Falo de preguiçar. Falo de amar.
É verdade que, tantas vezes, a profissão é também um lugar de felicidade. Sei-o bem. Mas ai de nós se for o único!
Dito (escrito) isto, vou só corrigir o trabalho de casa do 8.ºA e, logo a seguir, desligar. Sair da vida funcionária. Despir a bata dos horários com campainha e livro de ponto. Daqui a pouco, quero assistir descansado a uma jornada mais da Champions. O Ministério não tem nada com isso.

Ribeira de Pena, 01 de Outubro de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.portalresende.com.]

sábado, 27 de setembro de 2014

Coimbra


Aprendi que somos de uma terra muito mais que temos uma terra. Eu sou de Coimbra. 
O destino quis pôr à prova a minha fidelidade, a verdade que havia na minha devoção primeira: levou-me aos poucos para cada vez mais longe, de escola em escola. O meu amor, como um vinho doce, veio a tornar-se ainda mais apurado, mais especial. 
De modo que, a cada separação (uma semana, quinze dias, três semanas), tendo a sofrer mais e mais. E a desejar, com maior urgência, quase desespero, viajar para Coimbra. 
Na verdade, quando viajo para Coimbra, já não vou a Coimbra. Regresso. 
Até já, meu amor de onde sou.

Ribeira de Pena, 27 de Setembro de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.best.uc.pt.]

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Menina


A minha filha faz hoje trinta anos. À MP e a mim custa-nos a aceitar que o tempo passe tão depressa.
A V entrou pela nossa vida como um intruso frágil e, à velocidade da luz, tornou-se personagem principal na história da nossa existência.
Fomos abençoados com uma cria linda e inteligente. Não tinha de ser assim para que a amássemos, mas foi assim. O seu percurso escolar encheu-nos de baba mal disfarçada. A sua curiosidade alimentou-nos o maravilhoso espanto de existir. O seu sentido de humor tornou mais colorido o mundo que juntos percorremos.
É já uma mulher, naturalmente. O relógio avança. Mas ainda é a nossa menina. A sério: ao falar dela, ainda dizemos "a menina" (em pontual alternativa, " a miúda").
Assim que a menina nasceu, passei a saber mesmo do que se falava quando se falava de amor incondicional. No fundo, é estar disponível para a proteger até ao limite. Isso compreende, na minha cabeça, a eventualidade de dar a vida por ela. Não tenho a mínima dúvida sobre o conceito: o amor pelos filhos é, para pais verdadeiros, um verdadeiro curso sobre a noção de amor incondicional. Quando ela, há duas semanas, regressou da Madeira, quatro dias antes de nós, eu rezei mentalmente: "Meu Deus, se algum dos dois voos tiver de cair, que não seja o da minha filha." E eu, acreditai, sentia o que pensava (a MP também).
A minha filha tem trinta anos, não sei se já vo-lo disse.
Tenho muito orgulho na minha menina.

Ribeira de Pena, 02 de Setembro de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho

domingo, 17 de agosto de 2014

Baía


A baía de Machico tem, quase sempre, a forma de um abraço. O mar aninha-se nela como uma criança grande que regressa a casa. Às vezes, a rebentação marítima redesenha a costa - e o que era harmonia afigura-se uma briga de amantes caprichosos.
O amor tem marés.

Machico, 16 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em Madeiras - Gentes & Lugares.]

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Saudades do senhor Luís


Faleceu o senhor Luís Monteiro, marido da senhora Dona Lurdes Monteiro, pai da Ju e da Alexandra, vizinho e amigo da minha família. Soube-o hoje à tarde pelas lágrimas telefonadas da minha mãe. Eu, a MP e a VL ficámos profundamente tristes. Que pena tenha por, estando a um oceano de distância, não poder prestar-lhe uma última homenagem no funeral...
Hei-de, claro, logo que possível, falar com a sua família. E não me esquecerei nunca nunca nunca do senhor Luís vivo, esse ser elegante e correcto que atravessou, desde a infância, a minha vida mais pura. Até sempre, senhor Luís!

Machico, 15 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.meioambienteculturamix.com.]

Machico - liturgia do 1.º dia


Um homem procura, no chão da marginal, com o auxílio de um aparelho semelhante a uma bengala, objectos de metal que valham, talvez, o esforço da procura. A minha vida toda ali.

Uma funcionária limpa, com uma vassoura, cheia de paciência e de rigor, o lixo que a humanidade e a natureza produziram no dia anterior. A minha vida toda ali.

Um velho corre desajeitadamente atrás de um carro, gritando "Estou aqui!", desesperando por não o verem e perder a boleia.  A minha vida toda ali.

Um menino passa alegremente de bicicleta, metido num mundo muito próprio e muito secreto, feliz como um pássaro. A minha vida toda ali.

Uma senhora de idade indefinida sai da igreja com um suspiro nos olhos, quem sabe viajante entre o Visível e o Ausente que consabidamente há nas saudades. A minha vida toda ali.

Um homem contempla o mar, à procura de razões para seguir em frente. Cá estou. A minha vida toda aqui.

Machico, 15 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[O título do texto teve a colaboração do meu Amigo Daniel Abrunheiro, que sugeriu o termo "liturgia". A imagem foi colhida em http://wwwffotos2.blogs.sapo.pt..]

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Moinho Velho, ao Arnado

Ando por Coimbra feliz e leve como uma criança conduzindo um carrinho de choques na pista da feira popular. Divirto-me da forma mais pura, mais simples, mais próxima do menino que, em 1973, metia a ficha na viatura número 14 e driblava o trânsito colorido. "Nova corrida, nova viagem", ouvia-se entre cada aventura - e lá estavam, na curva certa, o meu pai e a minha mãe debitando conselhos e sorrindo, parecendo ali (como eu) alegres e imorredoiros.
Agora, à razão de alguns euros de gasóleo por dia, vou  levar e buscar a VL ao emprego (ela falou ontem na televisão, ena!), vou levar e buscar o A ao treino, ajudo a F a tratar das suas formalidades viúvas, faço compras, passeio com a MP, dou (sozinho) um salto a certo Café tranquilo, perto de casa, para sumo e literatura.
Gosto estranhamente deste ofício de motorista quase livre. Isto é, gosto desta condição de formiguinha urbana, que é feliz apenas por pertencer à cidade também sua. E quem me dera nunca sair desta rotina amada! Quem me dera ficar para sempre nesta paisagem conhecida, cheia de lugares pessoais, carregada de memórias e sentidos absolutamente meus (irreproduzíveis, é verdade, noutras geografias)!
Hoje, entre as dez e meia e o meio-dia, li um livro de Prosper Mérimée, extraordinário escritor francês do século XIX. Fi-lo num Café coimbrinha, junto a uma parede de vidro transparente que oferecia, à minha atenção irregular, o espectáculo da cidade viva, com gente e carros passando, em ritmo apressado ou vagaroso, rumo aos pontuais destinos de cada circunstância transeunte.
No livro de Mérimée, encontrei contos que relatavam lutas militares, intrigas de amor e ciúme, sonhos e frustrações, episódios épicos e pícaros, drama e humor. E era como se na leitura, feita no lado de cá, estivesse afinal o recheio humano do que, para lá do vidro do Café, eu ia vendo.
Creio que toda a vida tenho estado junto a uma parede assim. Uma parede de vidro transparente (mas às vezes, translúcido; mas às vezes, opaco) que, em vez de separar dimensões, une.

Coimbra, 13 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (foto do Café referido no texto) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.mogumogumunch.wordpress.com.] 

Estrada bela


Calha eu cansar-me, com certeza,
Se é maior o desejo que o ensejo!
Nunca me canso é da beleza
Que adivinho ou sinto ou vejo -

Triste seria, ó camarada,
Não haver beleza
(Não ver, sentir, adivinhar beleza).
Que deserto seria a estrada!
Que tristeza!

Coimbra, 12 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.zazzle.pt.]

Cão & Cadela



O meu primeiro cão morreu atropelado
E eu lembro aquele choro do Zé-Tó
(Irmão do menino que eu então era).

Decidi que cães nunca mais –
Só porque a minha filha me pediu tanto
É que tenho, hoje, esta cadela terminal
(Chamada Dara)
Morrendo de esclerose no inverno cego.

Porque é muito triste amar
(Como Sophia ensinou, por outras palavras)
Quem dura tão menos do que o nosso amor.

Coimbra, 13 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este poema é o último de um volume a que chamei Escrever Sobre Não Estares (2010). A imagem é da falecida Dara, que esteve na nossa família até há cerca de quatro anos.]

Agostinho & cão

 

Para onde pedalas, Joaquim Agostinho
Em mil novecentos e setenta e dois
Entre o túnel da Estação Velha e a Figueira da Foz?
Tu hás-de morrer no Algarve
Depois de um cão te atrapalhar o destino
E eu hei-de escrever sobre não estares.

Para onde pedalam os meus versos,
Campeão?

Coimbra, 13 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este poema faz parte de um volume a que chamei Escrever Sobre Não Estares (2010). A primeira imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.geopedrados.blospot.com; a segunda foi colhida, com a devida vénia, em http://www.torrresvedrasweb.com.]



Soldado Luís


Talvez houvesse quatro a zero, na segunda parte
E eu, aos treze anos, como um deus
Fosse o tetra-marcador do farto treino;
Talvez nos meus pés nascesse a arte
De, então, ser o melhor dos meus
Natural reizinho desse reino.

Mas depois tudo parou para ver da estrada
O cortejo do soldado do Ralis
E a tarde ali morreu tão empatada
Tão perto de eu chegar a ser feliz –

O nosso treinador, o Belchior
(Democrata só de Abril devindo)
Notou a noite, em vez do meu suor
Caindo.

Coimbra, 13 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este poema faz arte de um volume a que chamei Escrever Sobre Não Estares (2010). A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.nucleodeestudo25deabril.blogspot.com.]

Abril


Na noite da revolução dos cravos
O meu pai levou-me àquela rua
Onde milhares diziam morte aos pides
E faziam capotar os automóveis.

O meu pai era bate-chapas, gostava de carros
E fez a pergunta reaccionária: Porquê
Que culpa têm os carros?

Um homem (Belchior talvez, impaciente)
Gritou, com o punho ao alto, como flor
Porque sim, senhor.
Porque ali viajou muito inocente.

Eu fiquei com a frase e o punho zunindo
No meu coração de menino amante
Das coisas formosas.
Viva a revolução, quis dizer, mas meu pai
Encolheu os ombros e fez contas às amolgadelas
(Visíveis e invisíveis)
Do nosso furor colectivo.

Coimbra, 13 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este poema faz parte de um volume a que chamei Escrever Sobre Não Estares (2010). A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.pplware.sapo.pt.]

Taça de Portugal


Fugiu à história da guerra colonial
Um príncipe preto chamado Dinis;
Marcou, em 73, numa final
E eu fui feliz.

Depois Eusébio chutou contra mim
E perdeu-se a partida.
Foi, eu vos digo, sempre assim
A minha vida.

[Este poema faz parte de um volume a que chamei Escrever Sobre Não Estares (2010). A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.tesouroverde.blogspot.com.]

Salazar


Morreu o homem, disse a vizinha
E a mãe benzeu-se por obrigação.
Fomos à Estação, pela tardinha
Acenar adeuses ao caixão.

A multidão, vista de hoje, era um casal
(Meu pai e minha mãe, muito formosos)
E eu tão eterno e jovial
Tão longe de discursos desgostosos.

Um ébrio muito velho, pobrezinho
Disse é só paleio, é só paleio
O pai ensinou-me que era o vinho
E, depois, a polícia veio.

Tanto barulho, ali, tanto calor
Tanta gente para dizer adeus a um morto -
E eu sozinho dizendo daqui adeus
Àquela  tarde.

Coimbra, 13 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este poema faz parte de um volume a que chamei Escrever Sobre Não Estares (2010). A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.sabado.pt.]

Senhora Professora


I

A senhora gritava a aritmética e a ortografia;
Antes do recreio era uma noite muito grande
Nos corações (nus corações) de nós
Silentes
À mercê da régua agressora oficialmente ninguém.

Mas depois havia duas árvores na baliza de cima
E duas pedras na de baixo, com golos
Entre sul e norte
E o suor de oiro nos arredores do drible
Ou do falhanço.
Eu corria à velocidade de uma carreira internacional
E à noite, perante a multidão
(Sonhando ou não)
Agradecia à rua e a Portugal.



II

O recomeço da escola era uma ferida feia
Interrompendo a infância e a bondade do sol.


III

Naquela tarde era o dia em que naquela noite
Falaria o senhor Marcelo, presidente do Conselho
(Depois do Bonanza e das notícias)
E a senhora professora adormeceria a ouvir a continuidade
Do regime
Da sua velhice amargurada.



IV

Vinte valores pela redacção A amizade, eia!
Vem, orgulhosa, a minha mãe à escola
E o pai sorri já nobreoperariamente a ver
Aquele provável brilho que eu haveria de ser.
A redacção contava a queda do Jaimito
(Entre o quadro e a carteira, no sobrado)
Mais o nosso socorro muito aflito
(E só depois o riso disfarçado).

Éramos tão amanhã, tão prestes a ser
Tanta coisa tão distinta de haver morte
Que vistos de agora, ao entardecer,
Parece que de nós fugiu a sorte.

Coimbra, 13 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[Estes poemas fazem parte de um volume a que chamei Escrever Sobre Não Estares (2010). A imagem (recordando o Petit Nicolas) foi colhida, com a devida vénia, em http:/www.mesterressaintes.hautelfort.com.]