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Número de Ondas

quarta-feira, 18 de março de 2020

Mãe, 80 anos, a minha vida

   
A minha Mãe cumpre hoje oito décadas. Assustados com tantas doenças vizinhas da morte (pulmões, tiróide, mama, intestinos), pouco acreditávamos na longevidade desta Senhora. Não por acaso, há dez anos fizemos questão de reunir filhos, noras, genro e netos para uma festinha que, entre comida e piadas, mal disfarçava o odor à ideia de fim a haver. O tempo passou e Ela resistiu elegantemente ao calendário: continua bonita, com alegria de viver, adepta das palhaçadas que inventamos. É verdade que, por vezes, não nos reconhece à primeira, troca nomes e parentescos, embrulha alimentos e esconde-os, pede que a levem para sua casa e compreende mal que lhe garantam que aquela é a sua casa, resiste às nossas orientações por não as entender ou porque não lhe apetece – mas é capaz de uma súbita ternura que vale o mundo, como agradecer-me algo banal ou simplesmente pedir-me que fique ali ao pé de si “um bocadinho”, sempre com jeitos de menina frágil. Um dia, em viagem de carro, questionei-a sobre a identidade dos viajantes: com alguma ajuda, disse o nome da neta e o nome do neto; quando chegou a minha vez, disse-me que eu era “o pai”. Confirmei que, com o tempo, ela tem devindo nossa filha.
A mortalidade em geral é uma coisa estúpida. Mas a dos nossos amores é um excesso de crueldade, que me custa muito a perceber e a aceitar. Neste tempo do vírus novo e mortal, vou interromper a minha reclusão para ir a casa da minha Mãe e dizer-lhe que a amo. Talvez não o diga com estas palavras. Talvez nem sequer a beije, por razões de prudência sanitária. Se Ela estiver um bocadinho lúcida, vou falar-lhe dos cuidados de higiene que deve observar e de momentos felizes por onde temos andados juntos. Mentalmente, vou sofrer uma quadra nascida há minutos: 

Quão caro é o preço de viver
Quão funda é a ferida da saudade
Que triste é uma flor envelhecer
Que triste é não haver eternidade. 

Parabéns, Mãezinha! 

Coimbra, 18 de março de 2020. 
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto é de 2006 e tem Coimbra ao fundo. A foto é eterna.]

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