Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sexta-feira, 20 de março de 2020

Diário íntimo: Chuva e Público

  
1. Durante toda a noite, um dilúvio abateu-se sobre Coimbra. Espreitei, assustado, o fenómeno, aí pelas três e meia: a bátega atingia estrada, passeios, árvores, carros, como se a Natureza estivesse farta desta falsa calma que é a solidão. Pormenores cinematográficos: a luz dos candeeiros transformava os fios de água em serpentinas multicolores e em toda a rua se ouvia um som grave como o da vibração de instrumentos de corda. Poderia ser a cena inicial de um filme de terror; mas não resisti a encontrar certa beleza misteriosa nesta violência nocturna. 
  2. O dia amanheceu escuro e permaneceu triste pelas horas seguintes. São agora três e meia da tarde. Fios pluviais ininterruptos cruzam o horizonte para lá da minha janela. Tenho ocupado o tempo com teletrabalho e leituras avulsas (Branquinho da Fonseca, Raul Brandão, Dinis Machado, Eça). Já não há frutos secos. A televisão e a rádio não cessam de debitar a novela repetida e trágica da pandemia. Afeitos à lição do medo, protegemo-nos, ou julgamos que nos protegemos. Sinto remorsos por não visitar Mãe e Irmã, pouco me consolando ouvir-lhes as vozes via telemóvel. Senti a minha Mãe, hoje, mais desanimada do que é costume (ela disse que era da chuva). 
  3. Só hoje me apercebi de que o Público - grandíssimo jornal - disponibiliza a informação sobre o coronavírus de forma gratuita. A atitude é de uma nobreza extraordinária, muito para lá da dimensão ético-deontológica. 

Coimbra, 19 de Março de 2020. 
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC]

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