Sei o que são namorados:
é como a minha mãe e o meu pai juntos naquela fotografia do seu quarto, ambos com
os rostos tão mais novos, quando ainda não eram a minha mãe e o meu pai. Um
dia, disse-me a mãe, a Clara vai ser mãe de alguém como eu. (“Um dia, filho, a
Clarinha também vai ser mãe de alguém como tu.”) Mas talvez a minha irmã venha
a ser, um dia, mãe de alguém mais fácil do que eu.
O meu pai ouviu a minha
mãe e ficou muito preocupado, vi-o na cara severa que deitou sobre o jantar. A
mãe, aflita, murmurou-lhe alguma coisa (eu tentei ouvir, mas em vão). O avô e o
meu irmão gargalharam, os dois muito longe da nuvem boa que devia haver sempre.
O pai limpou os lábios num guardanapo azul e, sem dar tempo a gritos do avô ou
do meu irmão, autorizou que o amigo da Clarinha viesse almoçar connosco no
próximo domingo (“Podes trazer o teu namorado, filha.”). Domingo é um dia
diferente. A mãe vai à missa, o pai trata da casota do cão, o meu irmão e a
minha irmã dormem, quase sempre, até muito tarde e o avô, depois de cheirar o
almoço, vai ao quiosque comprar um jornal com muitas páginas e muitas notícias.
Neste domingo, a minha
irmã entrou na sala acompanhada de um Estranho. De um Outro. O meu irmão
murmurou qualquer coisa, mas mais para dentro de si, nem eu consegui ouvi-lo.
Talvez dissesse algo mau, como de costume. O meu pai cumprimentou o Outro com
um passou-bem. A minha mãe deu-lhe dois beijinhos na cara (um beijinho em cada
face). A minha irmã trouxe o Outro até mim e disse qualquer coisa, decerto algo
doce, porque era a minha irmã falando comigo. Eu deixei que o Outro me tocasse
no ombro direito, sem gostar disso, mas tão-pouco fugindo do toque. Aconteceu
que senti que aquele Outro era parte, talvez, da minha irmã, isto é, não me
pareceu que ele se tratasse verdadeiramente de alguém estranho. A Clara disse-me
junto ao ouvido que o Outro era o seu namorado, o Carlos. “Este é o meu namorado.
É o Carlos.” A minha irmã chama-se Clara. O Outro chama-se Carlos. Olhando de
soslaio para o Outro, soube que ele tinha o mesmo sorriso da minha irmã. Tenho
percebido que os sorrisos e a brutidade das pessoas são coisas contagiosas. No
caso dos sorrisos, é algo bom, é até um prazer acolher rostos destes na minha
nuvem. No caso da brutidade, é uma coisa assustadora. Basta pensar na raiva que
passou, creio eu, do meu avô para o meu irmão. É como se de um bicho do mal pudessem
nascer outros bichos, muitos bichos cheios de vontade de invadir a minha nuvem
e talvez de me destruir.
Um dia, escondido num
canto da minha garagem, dei com o meu irmão e o meu avô preparando a morte de
uma aranha. A aranha era gorda e, decerto prevendo o que lhe ia acontecer,
aninhara-se entre o armário das ferramentas e uma velha cadeira de metal.
Pensei, na altura, que era assim também, em geral, a minha vida: acantonado,
muito bem fechadinho na minha querida nuvem, à espera que os outros se fossem
embora. A aranha também queria decerto que o meu avô e o meu irmão a deixassem
quieta e em paz, na sua nuvenzinha de aranha de garagem. O meu avô e o meu
irmão riam-se sem alegria. Vi o meu avô acender um isqueiro e aproximá-lo da
aranha. E depois a aranha começou a arder. Sucedeu então que o meu irmão
gritou, agarrando-se ao avô. Assustei-me de o ver tão assustado, mas não deixei
de observar o resto da cena. Vi muitas aranhas, muitas aranhas pequeninas
saindo da aranha sua mãe, todas correndo e morrendo quase ao mesmo tempo.
Tenho medo de aranhas. Não
gosto de aranhas. Mas tive pena daquela porque, na verdade, o seu medo do meu
avô era igual ao medo que, a cada domingo, eu costumava sentir. O meu avô
chamou maricas ao meu irmão (“És um maricas, rapaz!”) Eu fui para o meu quarto
abanar a cabeça, para trás e para frente, sentado aos pés da minha cama, da
minha cama muito bem feita pela minha mãe. Tive de esperar muito tempo, dessa
vez, até ao regresso da minha nuvem querida. Porque a minha nuvem quebra-se e
recompõe-se, é assim. Digamos que é uma espécie de puzzle contra a desgraça. A
minha nuvem protege-me, salva-me de morrer.
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