A minha mãe tem uma voz
doce. A minha mãe tem a voz de uma nuvem. É como se eu falasse pela sua língua.
Sinto-a sempre tão próxima que, às vezes, não sei se é ela ou eu próprio
alisando os cobertores, ajeitando a almofada ou desligando o interruptor do
candeeiro. A minha mãe cheira a flores, a pão com manteiga, a frutos, ou talvez
seja eu que sinto jasmins no meu quarto por ouvi-la falar de jasmins, ou que
identifico o odor de maçãs por causa da cor do seu vestido, ou que sonho com
pão quando ouço, logo de manhã, os seus passos muito vivos na cozinha.
Ao domingo, almoça
connosco uma espécie de pai mais velho. É o pai do meu pai. É o meu avô. O meu
avô tem os olhos do meu pai, o nariz do meu pai, a boca do meu pai (com menos
dentes). Assobia como o meu pai para chamar o nosso cão. O meu pai chama-lhe
pai, e eu fico a pensar, dentro da minha nuvem, que isso é muito estranho. O meu
avô é, como eu o vejo-sinto, mau. O meu avô berra tanto como o meu irmão. Toda
a gente parece ter medo dele. O meu irmão também parece ter medo dele, embora o
meu avô poucas vezes se zangue consigo. Quando o meu avô se enerva, parece que
há uma trovoada ou uma guerra dentro da cozinha ou da sala de nossa casa: o meu
avô fica vermelho como um fogo grande, sai de casa a dizer que o meu pai é um
banana. (“És um banana! Um banana, filho!”) O meu avô chama filho ao meu pai, é
de facto muito estranho. Por causa do meu avô, detesto os domingos. À hora das
refeições, fico ao seu lado e, para não tremer, costumo fechar os olhos e fazer
de conta que ele não existe, não existe, não existe.
A minha irmã chama-se
Clara. A mãe esteve a conversar baixinho com ela, num canto da cozinha. Falam
assim para mais ninguém ouvir o que dizem. Mas eu ouço e elas não se importam.
O avô não gosta que falem baixinho, quero dizer, não gosta que falem sem que
ele possa ouvir. Queixa-se ao meu pai (que é seu filho), diz que é uma falta de
respeito para com o chefe da casa. (“Ouviste? É uma falta de respeito para com
o chefe da casa, meu banana!”) Chefe significa que manda. A mãe fica triste com
as palavras do avô. Se o meu pai fala consigo do assunto, ela grita, muito
nervosa, ou fica em silêncio. O meu pai dá-se mal com os silêncios ou os gritos
da minha mãe: antes de se fechar no quarto, batendo a porta, o rosto
torna-se-lhe vermelho, os olhos grandes e maus, as mãos agitadas como uma renda
frágil. O meu irmão ri-se e diz que a culpa é da Clara. A Clara tem um amigo
especial, como bem percebi na conversa sussurrada na cozinha. Eu quis saber
quem é. Perguntei-lho com os olhos e estalinhos na boca. Quando não estou muito
nervoso, eu consigo fazer estalinhos na boca. A Clara sorriu, com aquela doçura
dela que é um céu para mim. A mãe é que me explicou que a Clara tinha um
namorado. (“A Clarinha tem um namorado.”)
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