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quarta-feira, 12 de maio de 2010

Arte de Bate-Chapas


Muito novo ainda, o meu pai começou a trabalhar. Em 1950, era o costume. Com a 4.ª classe feita, iniciava-se a adulta rotina de ganhar a vida. Tornou-se ajudante de bate-chapas e, à custa de provas dadas, mestre reconhecido no seu ofício.
A sua técnica apurou-se de tal modo que, no meio operário e industrial de Coimbra, rapidamente lhe substituíram o nome de família (Carvalho) pelo da sua arte: “José Bate-Chapas”.
Que orgulho sentia eu, senhores, sempre que me interrogavam sobre a minha família e respondia: “Sou filho do senhor José Bate-Chapas...”
Ao contrário dos dois irmãos rapazes, nunca eu me interessei pelo mundo dos automóveis. Quando o nosso pai se tornou patrão (com dois empregados, contabilidade razoavelmente organizada, telefone comercial nas páginas amarelas), íamos à sua oficina e eu, sem hesitação, escolhia o escritório para abrigo. Ali escrevia cartas em nome do progenitor, pedindo desculpas pelas dívidas da empresa ou solicitando urgente pagamento, pelos clientes, de reparações já feitas. Também escrevia poemas, histórias inspiradas em Verne ou Dumas (pai e filho) ou Enid Blyton. E também lia.
Às vezes, calhava-me assistir ao trabalho de meu pai: via-o avaliar a amolgadela de uma porta, de língua de fora, e a abanar a céptica cabeça, e a apalpar o interior da chapa, e a martelar com fúria ou delicadeza, e a murmurar um ou outro desabafo vernacular, e a reanalisar a textura, e a martelar de novo, e a enxugar o suor do rosto, e a arrumar as ferramentas. Lembro-me de o estar vendo, e de estar vendo, ao mesmo tempo, a admiração circunstante à sua roda.
(Parêntesis. O meu pai devolveu-me, com excessivos juros, este enlevo. Mil vezes me apontou a amigos e a conhecidos, até a desconhecidos, como se eu fosse um fenómeno raro: “É meu filho; joga no União.” “É meu filho; anda na universidade.” “É meu filho; escreve no Diário de Coimbra.” “É meu filho; é professor.”)
Sei que tinha muitos defeitos. A minha mãe, coitada, sofreu muito e, apesar de tudo, amou-o santamente, mesmo em horas que convidavam mais à revolta do que ao amor. Mas era o meu pai, senhores.
Aprendi com ele esta coisinha singela de haver quase sempre remédio para os estragos, mesmo os mais aparatosos e violentos. Que às mãos de um artista pode um carro muito acidentado ficar como novo. Que a arte da reparação é, portanto, uma espécie de segunda criação de objectos e de seres.
Na vida, tenho sofrido a minha considerável quota-parte de amolgadelas. Algumas, notai, violentas e de improvável reparação.
Bate-chapas da escrita, eu avalio-as, abano a cabeça, ponho mentalmente a língua de fora, e tento fazer, dos acidentados dias, dias novos.
Nem sempre sou capaz. Nem sempre (me) é possível. Mas tento, pai.

Ribeira de Pena, já 12 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto-supra foi tirada na Praia de Mira, por alturas de 1966 ou 1967. Vê-se o primo Valter e a esposa, a cunhadita do Valter, o senhor Jorge do “Café S. José”, o meu pai, o irmão Tó, eu, a irmã Fátima e a minha mãe (de luto pela sua própria mãe, a avó Adília).]

2 comentários:

Anónimo disse...

Caro amigo,
que bela HOMENAGEM ao progenitor, feita com a arte e o engenho de quem já "bateu muita chapa" (metaforicamente falando, claro).
Abraço
Nelson

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Obrigado, pela visita e pelas palavras, Amigo!

Abraço.

JJC