Bússola do Muito Mar

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domingo, 3 de janeiro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (21)


Mondego & Tempo


No coração de cada homem, há um rio mais importante do que os outros. Faz parte, quase sempre, do cenário da terra natal, mas vai além: é uma marca de identidade muito profunda, um sinal, uma sina.
Eu vi o Mondego do colo da minha Mãe, durante as festas da Rainha Santa; da janela do autocarro escolar (com a professora primária aos berros), em direcção às piscinas de Celas; pelo vidro traseiro do carro de meu Pai, a caminho do campo da Arregaça, onde jogava o União de Coimbra. Cheguei a tomar banho nas suas águas, com amigos de infância e adolescência, em recantos do mítico Choupal, numa espécie de lago que designávamos por “Frigorífico”. Mergulhávamos ali de calções ou cuecas, e havia até quem se afoitasse nu (esses estavam sujeitos a partidas cujos autores nunca revelarei, mesmo porque as vítimas ainda hoje, à lembrança do que passaram, fazem má cara).
A vida já me pôs em contacto com outros rios célebres, como o Tejo, o Douro, o Minho, o Lis, o Nabão, por exemplo. Mas o meu rio, não há dúvida, é o Mondego. Nenhum se lhe compara nesta enviesada avaliação que, compreendei, se funda muito mais no amor que na wikipédia.
A ideia de que os rios são uma imagem da vida, de tão usada por filósofos, poetas e padres, tornou-se clichê. Mas continua a fazer sentido. O mesmo se aplica à ideia de Destino como a busca da exacta foz onde desaguar, só então se atingindo essa plenitude e essa liberdade a que chamamos mar.
Contudo, a partir dos 40 anos, mais ou menos, transcorrida metade da nossa existência provável, tendemos à reformulação desta metáfora (ou alegoria). Daí em diante, a vida já não se vê apenas como um percurso entre a nascente e o mar; é também a viagem inversa - do mar onde estamos até a alguns lugares-tempos de onde viemos, certas circunstância em que fomos córregos novos, ribeiros moços, rios cheios de saúde e de causas. Na verdade, o passado e o presente, na fase da maturidade, tendem a (con)fundir-se. O mar que deviemos não se esquece dos fios de água doce anteriores a agora.
Lembrei-me disto neste Natal, enquanto ajudava a minha Mãe a subir umas escadas, no regresso do centro comercial, após a travessia da ponte do Açude, num dia em que o Mondego estava cheio de água e de paz. Ela estava cansada – da viagem e da vida toda. Procurou apoio em mim e eu dei-lho. Como se ela fosse minha filha.


Coimbra, 29 de Dezembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 31-12-2015.]

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