
Na idade em que comecei a beber café (“beber a bica”, como se diz em Coimbra), aí pelos catorze anos, o principal Café da minha rua era o “Lusa Nova”. Havia, no outro lado da rua, outro Café (o “Lancer”), mas esse parecia-me reservado aos senhores importantes, que usavam casaco, água-de-colónia francesa e tinham esposas loiras e carros novos.
No Lusa Nova, pedia-se o jornal ou o café aos gritos: Ó João! Ó Zé! A minha bica?
E um dos irmãos respondia, tranquilamente: Está-se a vestir…
No Lusa Nova, o barulho era sempre o de uma festa que se prolongasse pelo ano todo. No Lancer, ouvia-se perfeitamente a novela brasileira de horário nobre.
À 3.ª feira, o Lusa Nova fechava. Os clientes habituais atravessavam a rua e iam ao Lancer. Eram serões taciturnos, esses. Falava-se mais baixo, raramente se ouvia um palavrão, o dono era um senhor cujo nome me escapou entretanto.
Desde que o destino me separou de Coimbra, não voltei ao Lusa Nova. Não tive motivos para tal, senão este triste hábito que há em mim de me antecipar ao fim, como se o fim acontecesse por minha livre e espontânea vontade. Deixei de aparecer, desapareci.
Há tempos, passando anonimamente de carro, percebi que o Lusa Nova estava fechado para obras.
Entretanto, descobri que o meu Café da juventude (onde vi o meu pai ganhar infinitas cervejas jogando “à moeda”, um sportinguista com um poster do Sporting ao pescoço numa noite de Junho, o Álvaro a chamar nomes ao árbitro do França-Portugal, o Lúcio e o Manaca contando anedotas de franceses, ingleses, espanhóis e portugueses) fora vendido e se tornara uma pastelaria com um nome diferente.
Soube que o Senhor João e o senhor José haviam mantido uma parcela daquele território – a papelaria, com o totoloto e a máquina de fotocópias. Ainda bem. Para mim, é até como se o Cinema Paraíso do Tornatore não morresse completamente. (Em Coimbra, “Cinema Paraíso” pode significar “Sousa Bastos”.)
O senhor João era talvez o único portista a sério que, nos anos 70, assumia publicamente essa excentricidade. Durante uns bons dez anos, olhávamos para aquele homem como uma aberração simpática que interrompia, com o viço da novidade que era, a habitual disputa entre Benfica e Sporting. Com o tempo, vieram as vitórias do F. C. Porto e as nossas conversas com o proprietário do Café devieram mais frequentes e menos amigáveis.
Engraçado, na minha vida, foi ter encontrado em Ribeira de Pena um Café que parece ser a versão transmontana do Lusa Nova. O “senhor João”, aí, é benfiquista. As conversas que mantenho agora, pensando bem, são as mesmas que tive na Rua Dr. Manuel Almeida e Sousa, no Café da minha rua. De certo modo, a humanidade repete-se-me.
A minha rua, em 1977, era o centro do universo. O Café Lusa Nova era o coração social da minha rua.
Visto o fenómeno de Ribeira de Pena, 32 anos depois, o centro do universo mudou-se.
O coração do mundo é onde estamos, portanto.
(Mas, atenção, nem sempre estamos onde nos vêem.)
Coimbra, já 07 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
Ena pá, gostei tanto disto que ainda gosto.
ResponderEliminarAbraço, Daniel!
ResponderEliminarQJ