Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sábado, 30 de julho de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (49)

Crónica do mês que vem

1.              Com a idade e a atenção, é possível que nos chegue a sabedoria. A evolução nota-se, entre outros sinais, pelo uso competente da tão preciosa serenidade (por oposição ao desassossego sanguíneo), mas também pelo do silêncio (por oposição ao falatório inconsequente). Já agora: creio que a capacidade de síntese, que poupa os outros à dispensável verborreia dos faladores, é uma forma amável de silêncio.
Olhai, por exemplo, o que se pode dizer – com a voz de um velho passeando ao entardecer, sem outra pressa que a urgência de comunicar – sobre os verbos-conceitos Ser e Ter. Sobre Ser: a vida humana carece essencialmente de amor e de esperança. Sobre Ter: a maior riqueza para os vivos é a saúde e o tempo.
2.              Dito isto, quero falar-vos de Agosto. O melhor escritor português vivo (que escreve n’ O Ribatejo) não gosta deste mês, mas eu – que admiro a graça e o génio com que ele o diz – discordo apaixonadamente desse juízo. Tirando pontuais dores de cabeça, que assinalam picos de temperatura, e variadas dores musculares, que ecoam a teimosa prática de desporto, eu sinto-me um alegre milionário da vida, neste Estio maior. Sou o que quero, tenho quanto preciso. Acordo sem despertador, participo na vida doméstica com vagar e método, falo com vizinhos do (meu) “querido mundo” (expressão colhida em Giovanni Guareschi), passeio, namoro, frequento esplanadas, escrevo, leio, vejo filmes e séries imperdíveis, visito o amado Mar.
O grande Ruy Belo bem dizia que é “o Verão a única estação”. Eu digo, com sabedoria de tempo feita, que o melhor do ano está em Agosto, esse mês em que até um velho é capaz de sentir-se novamente novo.

Ribeira de Pena, 21 de Julho de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho

[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 28-07-2016.]

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Canção infinitiva


Canção infinitiva

 

Já visitei mil recantos

Já sofri por procurar

Já fui água de mil prantos

Já sofri por não chegar.

 

Já sofri por não saber

O que havia de buscar

Já sofri por perceber

Que era outro o meu lugar.

 

Já fui água de nascente

Já fui Mar de ir e vir –

Está-se tão bem no Presente

Não quero daqui sair!

 

Ribeira de Pena, 22 de Julho de 2016.

Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem (da formosíssima Praia da Tocha) foi colhida em http://www.praiaportugal.com. O título deste poema era para ser “Infinitivo”. A palavra “canção” foi sugestão do grande Daniel Abrunheiro.]

ZONA DE PERECÍVEIS (48)



Suave Moralidade, Interesse Durão

 

Numa fase a que, por caridade, poderíamos chamar “período formativo”, Durão Barroso foi um feroz maoísta. Alegadamente, algumas conversas e leituras tê-lo-ão transformado num entusiasta da social-democracia, pelo que lá aderiu ao PPD. À boleia dos amigos certos (e decerto também da sua verve ruidosa e incendiária qb), chegou a presidente do partido. Nessa condição, viu-se - para surpresa e susto de muitos – no lugar de primeiro-ministro de Portugal. Mas o cargo, que era “a grande missão” da sua vida, passou subitamente a coisa descartável, ao ser convidado para presidir à Comissão Europeia. Falou-se, então, no facto de outros europeus (incluindo primeiros-ministros), embora convidados, antes ainda de Durão, terem recusado a oferta, devido a (imagine-se!) questões de ética pessoal e política.

Enquanto presidente da Comissão, Durão Barroso foi um burocrata cinzento e medíocre, que se portou como um fiel empregado dos governos mais poderosos da Europa. Pelo meio, viu obedientemente “as provas” da existência de armas de destruição maciça, que Saddam Hussein se preparava – garantia-se – para usar contra o Ocidente. As ditas armas, afinal, não existiam, talvez nem tivesse valido a pena Durão ter-se posto em bicos de pés para aparecer na fotografia com os mentores da invasão do Iraque (Bush e Blair).

Durante a mais recente crise financeira, que começou, do ponto de vista europeu, na Grécia e se estendeu, entretanto, a outras nações (incluindo a nossa), Barroso chegou a denunciar, timidamente, algumas instituições americanas ligadas ao crédito, ao investimento e à especulação, cujas práticas selvagens contribuíram decisivamente para o caos superveniente. Entre estas organizações, como se sabe, estava a mui poderosa Goldman Sachs.

Já reformado da Europa, com a modesta pensão de (diz-se) 11 mil euros mensais, quiçá desapontado com a ausência de uma vaga de fundo entre os portugueses que lhe implorasse a candidatura à presidência da República, recebeu uma oferta de emprego da – adivinhais? – Goldman Sachs para presidente não executivo daquela instituição. Indiferente a quaisquer reticências morais ou ao ruído indignado dos europeus (nacionais e internacionais, arraia-miúda e líderes importantes, políticos e politólogos, comentadores e filósofos, etc.), Durão fez as continhas e aceitou (mais) esta oportunidade.

Disse Frederico Carvalho de seu Pai (Rómulo de Carvalho/António Gedeão) que “tudo quanto fez, foi por amor”. De Durão Barroso se poderá dizer, ecoando O’Neill, que tudo quanto tem feito é pela (sua) vidinha.

 

Ribeira de Pena, 17 de Julho de 2017.

Joaquim Jorge Carvalho

sexta-feira, 15 de julho de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (47)




National Geographic

Ei-lo. Reparai como, já bebida a latinha de cerveja e esgotado o maço de tabaco, atira uma e outra embalagens para a estrada, num gesto cheio de cilindradas e ruído. É o mesmo que cigarra, charuta ou cachimba sobre o vizinho de mesa, berra convicções ao telemóvel (no Café, na sala de reuniões, na missa, no auditório municipal) e, não necessariamente bêbedo, urina na rua, com a majestade e a indiferença de uma vaca.
Também o podem apreciar a acompanhar o cão, com paciência e método, rua acima e rua abaixo, várias vezes esperando que o quadrúpede se alivie liquidamente contra o muro de minha casa, ou solidamente no passeio público. Se interpelado, rosna insultos e superiores explicações sobre a natureza biodegradável da excrementação do seu Rex.
O modo como conduz o automóvel é um atestado de virilidade, desesperado grito contra a murcha desconfiança dos outros. Quase nos mata, nos troços quotidianos da vida funcionária, ignorando limites de velocidade, traços contínuos ou curvas sem visibilidade. Aprecie-se a jactância com que, na tasca de destino, recorda mais um recorde de habilidade e lepidez.
Vê-se bem que gosta de sentir o poder nas suas mãos. Bate, com devoção, na mulher e nos filhos, nos adeptos de clubes adversários (mas só se eles estiverem em inferioridade numérica). É profundamente racista e, embora despreze quase todos os conterrâneos, afirma o seu patriotismo através da mais elementar xenofobia. Política e psicologia desaguam no mesmo apotegma: se algo corre mal, a culpa é fatalmente dos outros.
Critica a lei e os juízes, se lhe limitam a concretização impune de impulsos e caprichos. Mas declara o seu amor pelos tribunais, ao invés, se lhe validam os interesses do egozinho, ainda que colidindo com algum pormenor ético ou moral.
Crê-se um sobrevivente, e por isso olha de modo trocista para os românticos deste mundo, esses que estranhamente sacrificam o conforto pessoal à noção de justiça, de bem, de verdade, de lealdade. Na sua taxonomia pessoal, esta gente lamentável caracteriza-se pela fraqueza e pela falta de tino. São (e di-lo com claro desprezo) os totós, os panhonhas, os poetas.
Finalmente, revela um ostensivo ódio à educação e à cultura. Despreza a arte mais burilada, a Música maiúscula, o humor que obriga a pensar, a mariquice da poesia ou do teatro. E, na maioria dos casos, embora se autoproclame catedrático do desporto, não se dá ao incómodo de o praticar.
À primeira vista, chamar-lhe-íamos porco, atendendo ao gosto que revela em refocilar-se na porcaria que ele próprio produz. Mas, atenção, estamos na presença de uma espécie mais complexa: é a besta. A famosa besta-quadrada. Reproduz-se com preocupante facilidade. Anda por aí. É preciso cuidado, leitores.

Vila Real, 08 de Julho de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 14-07-2016.]

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Café Santa Cruz, amada Coimbra, Livro e Amigos


Foi no dia 25 de Junho, em Coimbra, pelas 16 horas. O meu Amigo Maior, Daniel Abrunheiro, emprestou o seu extraordinário brilho à apresentação do livro JÚLIO DINIS - AS PUPILAS DO SENHOR ESCRITOR, que é uma formosa versão da minha tese de doutoramento em Literatura Portuguesa pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (edição da Caleidoscópio). A minha Filha, a VL, participou na cerimónia, lendo comigo um divertido trecho dramático ("Uma consulta"), da autoria de Júlio Dinis. Esteve presente o editor, o Dr. Jorge Ferreira.
Agradeço a gentileza do sr. Vítor Marques, que me disponibilizou o mítico Café Santa Cruz para o lançamento da obra na minha amada cidade natal. A cerimónia fez-se, não com a colaboração da Câmara Municipal de Coimbra, mas apesar da Câmara Municipal de Coimbra, que ignorou todos os meus pedidos de apoio e me dedicou um ostensivo e conspícuo desprezo. Apesar disso, ofereci à Biblioteca Municipal da cidade um exemplar da obra, como tenho feito, regra geral, com todos os livros que me vêm editando (alguns dos quais na sequência de prémios literários que ganhei). O meu amor a Coimbra, do ponto de vista autárquico, é um tradicional amor romântico - generoso, profundo, não correspondido.
Redescobri, na cerimónia do Café Santa Cruz, a angústia que um homem sente perante a possibilidade de, num encontro marcado por si, ter ou não ter a presença de muitos amigos. Veio bastante gente, thank God: ali avultavam a MP, a VL e a minha Mãe, o Tó, a Maria de Fátima, o Nelo, a Paula, o Sérgio, a Adélia, a Laidinha, a Graça Abrunheiro, a Patrícia, o Carlos Simões (pai da Maria), a Fátima Branco, a Anabela, a Conceição, a Ana Sebastião, a Dolores, a Branca, o Lita, o Januário, o Rui Vala, o Jorge Jesus, o Patrick, o Agostinho, o Rui Candeias, tantos outros...
Faltou também (hélas) muita gente, como era - convenhamos - inevitável. Mas eu retive sobretudo o sentimento de gratidão por quem, ultrapassando numerosos obstáculos (tempo, distância, saúde, afazeres), veio mesmo. Vistos da mesa onde estive, foram um aconchego impressionante e inesquecível. A Amizade é uma delicada forma do Amor. Eu confirmei esta verdade singelíssima: ser amigo é, no essencial, estar "lá" quando o amigo precisa. Eu precisei e estiveram lá. Que dizer-vos, gente de ouro, senão MUITO OBRIGADO?

Coimbra, 26 de Junho de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho

ZONA DE PERECÍVEIS (46)



O menino da sua Mãe

Numa esconsa nota à roda da selecção polaca (lida, salvo erro, no JN), soube que o médio Jakub Blaszczykowski - nome de guerra: Kuba – viu a sua Mãe morrer às mãos assassinas do Pai, em 1996. O jogador do Borussia Dortmund era, à época, um menino com apenas 10 anos.
O episódio é suficiente para provocar uma profunda comoção em qualquer ser humano. Mas o textito acrescentava esta informação: agora, quando o polaco obtém um golo, ajoelha-se, olha para o céu e ergue as mãos, como numa prece: assim agradece à Mãe – diz ele – o facto de continuar presente, apesar da morte, iluminando-o, animando-o, inspirando-o.
Quando, em qualquer narrativa ou argumento, aterra a imagem da Mãe, eu sou, sem vergonha nem remorso, um fatal lingrinhas. E, correndo o risco de perder, por estes dias de euforia futebolística, a nacionalidade portuguesa, aqui vos confesso – ai de mim! – que senti, misturado com a doçura da nossa vitória sobre os polacos, um escandaloso travo de amargura. É que o menino Kuba foi, do lugar de onde percebi o jogo, um dos derrotados da noite.
Os meus pacientes leitores já sabem, no momento em que lêem estas perecíveis linhas, se Portugal chegou ou não à final do torneio. Vou imprudentemente supor que sim – e que, na nossa memória, ardem ainda as imagens de um qualquer remate genial (oxalá do rei Ronaldo), um qualquer carrinho salvador de Raphael Guerreiro, um qualquer voo impossível de Rui Patrício. Vamos até, em demencial e infantil devaneio, imaginar que, aí pelas 10 horas da noite do dia 10 de Julho, 12 anos depois de a Grécia nos ter reexplicado o conceito de “tragédia espectacular”, Portugal é campeão europeu de futebol.
Perdoai-me, ainda assim, este pecado lamechas, ó cúmplices foliões da bola - mas eu preferirei para sempre, de entre tantos gestos e dribles e defesas e vitórias, aquela imagem de Kuba, após um golo à Ucrânia, no dia 21 de Junho, ajoelhando-se, erguendo os olhos e os braços para o céu, agradecendo à sua Mãe. Não morta, sublinho: viva, afinal, por o seu menino, lembrando-se dela, não a ter deixado morrer.

Vila Real, 02 de julho de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho

[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 07-06-2016.]

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Soneto da Ha(o)rmonia - com métrica irregular

Não bem anda, levita
Rua acima, faiscando
À passagem, de tão bonita
A dor de a estar olhando.

Ancas trotam, trocistas
Seios voadores esvoaçam
E lábios lobos conquistam
Os que, caçando-a, se caçam.

De a ver, acende-se a fadiga
De logo a estar perdendo. E o desejo
É um secreto canto sem cantiga.

Meu sangue faz-se mar ainda Tejo
E, embora já ausente, a rapariga
Para sempre está, pois, ‘inda a vejo.

Vila Real, 02 de Julho de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem – da belíssima Gwyneth Paltrow – foi colhida, o a devida vénia, em http://www.encorentretainment.blogspot.com.]

segunda-feira, 4 de julho de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (45)


Portugal em aforismos

Em Portugal, a diferença de rendimentos entre os mais ricos e os mais pobres é cada vez maior e os escândalos de corrupção, roubo e branqueamento de capitais sucedem-se com frequência aterradora, envolvendo não poucas vezes governantes ou ex-governantes. Isto, sublinhe-se, após 42 anos de democracia. Diz o povo, recordando o passado fascista, que não há mal que sempre dure - e completa, recordando o presente vigarista, que tão-pouco há bem que nunca se acabe. Sobre os episódios de corporativismo, nepotismo e amiguismo, o povo filosofa: quem parte, reparte e não fica com a melhor parte, é tolo ou não tem arte.
Apesar de toda a gente em Portugal, por devoção ou obrigação, ir hoje à escola, nunca se viu tanta falta de educação – nos modos dos indivíduos, na violência de palavras e actos, no desprezo pela saúde do planeta, na brutidade para com os semelhantes (mesmo os familiares, mesmo as crianças, mesmo os idosos). O povo diz que o segredo é andar para a frente, porque atrás vem gente, e que entre mortos e feridos alguém há-de escapar.
O Cristiano Ronaldo é o melhor jogador português de sempre, mas a ignorância, a ingratidão e a inveja de muitos compatriotas reduzem-no, com frequência impressionante, a saco de pancada nacional, basta que a bola bata na trave (ou que o guarda-redes dos outros faça uma defesa impossível) – a turba maldizente é célere a ver no madeirense galáctico o culpado de todas as frustrações e de todas as derrotas: babando-se de ódio ou ciúme, o país critica-lhe a autoconfiança, o penteado, o desassombro, as namoradas, a ambição, a fortuna, e uiva-rosna-ladra, sobre a provável injustiça do julgamento popular, que quem não quer ser lobo não lhe veste a pele. Augura também, sibilante: quanto maior é a subida, maior é a queda.
O centrão político anda a governar-se, mais do que a governar-nos, há quase quatro décadas. Não obstante os insultos da vox populi, são sempre os mesmos a ganhar as eleições, tão certo como um e outro serem – os dois – iguais. O povo acha que não vale a pena trocar o certo pelo incerto e que atrás de mim virá quem de mim bom fará. Os eternos donos do poder reforçam esta crença com suposições ominosas acerca das consequências (sempre nefastas) de eventual mudança, tudo com sérias reticências no discurso e com graves reticências no tom do discurso, pois – já se sabe – para bom entendedor, etc., etc.
Posto isto, que não é realmente encomiástico para o meu país e para os meus compatriotas, eu tenho de dizer que amo o meu país e os meus compatriotas. Talvez caiba aqui mais um aforismo: quem o feio ama, bonito lhe parece.

Coimbra, 26 de Junho de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho

[Esta crónica foi publicada o semanário O Ribatejo, edição de 30-06-2016.]