O senhor Silva é o merceeiro
mais antigo da vila. Um ano depois de se ter casado com a menina Maria
Paciência, inaugurou o estabelecimento, numa cerimónia simples, mas agradável,
que meteu o presidente da junta, Horácio Honrado, o padre Asdrúbal, a
professora primária, Dona Vanda Vidas, alguns amigos e também, já depois dos
discursos, muita população – gente curiosa face à novidade e que não queria
perder os rissóis e os bolos de bacalhau à disposição, nem o vinho (tinto ou
branco) servido pela mãe do proprietário em generosas canecas de barro.
Ao longo de quatro décadas,
houve muitas mercearias inauguradas na vila, mas o negócio do senhor Silva
resistiu exemplarmente à concorrência, tornando-se numa espécie de instituição
local, que nem o centro comercial nascido, no início do século XXI, conseguiu
derrubar.
Os clientes mais velhos
dizem que o segredo do sucesso está sobretudo na forma como o senhor Silva
trata os clientes. Apesar de não ter passado da 4ª classe, o merceeiro – já
septuagenário, hoje – é um mestre na mui necessária e delicada arte de bem
tratar quem entra na sua loja. Ele dá voz aos interlocutores, espera
serenamente a vez de também falar, evita o ruído, usa o tom de voz adequado –
e, se vier a propósito, solta uma gargalhada franca, dá um abraço cúmplice, ou
deixa o útil manto do silêncio descer sobre a conversa.
A dona Glória, esposa do
senhor José da Farmácia, diz que o senhor Silva é um cavalheiro e que, para
além de muito bem-educado, sabe comunicar com as pessoas. E, diga-se, a dona
Glória nem sempre é uma cliente fácil…
DONA GLÓRIA (com modo afectado, senhoril): Senhor
Silva, algumas castanhas tinham bicho!
SR. SILVA (com sincera simpatia): Não me diga!
Lamento muito, dona Glória, sinceramente.
DONA GLÓRIA: O meu Zé ficou muito aborrecido, sabe?
SR. SILVA: E com inteira
razão, dona Glória! Quando eu vou à farmácia, ele também não me dá remédios
estragados…
DONA GLÓRIA (sorrindo, evidentemente satisfeita com a
resposta): Exactamente. Ora ainda bem que percebe…
SR. SILVA: Sem dúvida!
Hei-de transmitir ao meu fornecedor a sua informação, dona Glória.
DONA GLÓRIA (já com um tom de voz amigável, cúmplice):
Uma pessoa, assim, sente-se enganada.
SR. SILVA: Compreendo, dona
Glória. Espero que a próxima remessa já seja do seu agrado. (Sorri.) Mas, em compensação, a senhora
já viu o aspecto maravilhoso destas maçãs?
DONA GLÓRIA (muito interessada): Na verdade…
O senhor Vítor Valadas,
comandante da esquadra da GNR, não troca a mercearia do senhor Silva por nada
deste mundo. Para comprar uma caixa de fósforos, alguns quilos de bacalhau ou um
saco de carvão, é à loja mais antiga da vila que o militar recorre.
VÍTOR VALADAS (em tom de voz grave): Bom dia, Sô Silva.
SR. SILVA (com simpatia): Senhor comandante, como
está?
VÍTOR VALADAS: Cá vamos
andando.
SR. SILVA: É o que é
preciso. Se possível, com saúde.
VÍTOR VALADAS: Então o
Boavista lá ganhou, hã?
SR. SILVA: É verdade. E
ainda bem!
VÍTOR VALADAS (como se tivesse sido ofendido): Ainda
bem?! O senhor sabe que eu sou adepto da Académica. A vitória do Boavista foi o
pior que me podia acontecer!
SR. SILVA (serenamente): Compreendo. Foi mau para o
seu lado, na verdade. Mas, sabe, o meu cunhado é boavisteiro… O senhor
conhece-o.
VÍTOR VALADAS (serenando): Claro que conheço. É o Tó
das Finanças.
SR. SILVA: Ele mesmo. Bom
homem…
VÍTOR VALADAS (voltando ao assunto com paixão): Mas a
Académica é um histórico, ó sô Silva!
SR. SILVA (com entusiasmo): Absolutamente. No
futebol português, trata-se quase de “um grande”…
VÍTOR VALADAS (indignado): Quase? A Académica é mesmo
um grande, sô Silva!
SR. SILVA (serenamente): Tem alguma razão. É um
grande também, se pensarmos no prestígio…
VÍTOR VALADAS (satisfeito com o discurso do interlocutor):
Na tradição!
SR. SILVA: Isso mesmo, na
tradição. (Sorri.) E, por falar em
tradição, ó senhor comandante, este fiambre que aqui leva é do mais tradicional
e baratinho do mercado!
VÍTOR VALADAS (curioso e satisfeito): Por acaso, tem
bom aspecto…
Ao longo de 40 anos, poucas
vezes o senhor Silva teve de se indispor, tão clara é a sua vontade de agradar
aos clientes, sempre em nome da boa convivência e do negócio. Houve aquele
episódio com o senhor Marco Martelo, ex-oficial da marinha, que andara 30 anos
sem beber e, depois da reforma, dera em embriagar-se quase diariamente. Quando
vinha à mercearia comprar tabaco, aí pelas 4 da tarde, já tresandava a vinho ou
cerveja e qualquer pretexto servia para iniciar uma ruidosa discussão com quem
lhe aparecesse à frente.
MARCO MARTELO (falando alto, rudemente): No centro
comercial, o tabaco está 5 cêntimos mais barato, ó sô Silva!
SENHOR SILVA (falando amigavelmente): A sério, senhor
Martelo?
MARCO MARTELO (com alguma agressividade): A sério, sim!
Eu quando falo é a sério!
SENHOR SILVA (sempre sereno): Não duvido, senhor
Martelo. Mas, sabe, eu pratico os preços que vêm no contrato com a
distribuidora. Nem mais, nem menos.
MARCO MARTELO (cortante, rude): Eu não quero saber do
seu paleio, homem!
SENHOR SILVA (pacientemente): E faz bem. O que
interessa mesmo é o que o senhor pensa do assunto.
MARCO MARTELO (agressivamente): Não gosto de ser
roubado, ó sô Silva!
SENHOR SILVA (sereno, mas igualmente assertivo, em tom de
voz muito sério): Ninguém gosta, meu amigo. Mas escusa de gritar, senhor
Martelo, porque até me assusta a clientela…
MARCO MARTELO (berrando): Grito o que me apetecer! O
senhor saiu-me um bom vigarista!
SENHOR SILVA (solene): Não diga isso, senhor Martelo!
O senhor conhece-me, sabe que sou uma pessoa honesta e decente.
MARCO MARTELO (rudemente): Isso é o que você diz! Olhe,
dê-me cá dois maços de tabaco, que eu já me estou a irritar com a conversa!
SENHOR SILVA (calmamente): Não se irrite, senhor
Martelo. Aqui estão os dois maços que pediu.
MARCO MARTELO (ameaçador): Vai fazer-me o preço que eu
pago no centro comercial, não vai?
SENHOR SILVA (calma e assertivamente): Isso é que não
pode sr. Para ter esse preço, terá mesmo de ir ao centro comercial, senhor
Martelo. Aqui está o troco.
A história não acabou aqui.
No dia seguinte, logo pela manhã, o senhor Silva deixou a esposa ao balcão da
mercearia e foi ao Café Central. Aí encontrou, como calculara, o Marco Martelo
e, no tempo de beber um café, disse-lhe muito assertivamente:
SR. SILVA: Ontem, o senhor
Martelo estava bêbedo e tratou-me mal. Queria que, agora, em seu juízo, me
pedisse desculpa e me prometesse que aquilo não volta a acontecer.
O
ex-oficial da marinha começou por sorrir.
MARCO MARTELO: Isso é mesmo
necessário, sô Silva?
SR. SILVA: É mesmo
necessário, sim. Custava-me muito perder um cliente, mas tão-pouco posso perder
a dignidade, senhor Martelo.
Marco Martelo deu-se conta
do ar solene do merceeiro e, fosse pela amizade, fosse para evitar a proibição
de entrar, daí em diante, na loja, respondeu:
MARCO MARTELO: Aquilo foi o
vinho. Desculpe-me, sô Silva. E o seu café, faço questão, pago eu!
O presidente da Junta, neto
daquele que, há 40 anos, estivera na inauguração da mercearia, admira a maneira
de ser do senhor Silva. Diz-lhe às vezes:
PRESIDENTE DA JUNTA: O
senhor, se tem estudado em novo, era diplomata.
A isto responde o merceeiro:
SR. SILVA: Na vida, todos
temos de ser um pouco diplomatas. Às vezes, zangamo-nos mais por causa da forma
como dizemos as coisas do que por causa das coisas que dizemos.
PRESIDENTE DA JUNTA: Tem muita
razão! E assim se consegue manter uma sã convivência, não é verdade?
SR. SILVA: Sem dúvida. Uma
sã convivência e um são negócio!
Ouve-se muitas vezes falar
de serviço público – na rádio e na televisão, por exemplo. Por mim, quando ouço
falar desse tema, lembro-me do senhor Silva ao balcão da sua loja: sereno,
afável. competente, com um eterno sorriso na boca, nos olhos, nas palavras. É
um homem que sabe comunicar.
Comunicar, etimologicamente, significa “pôr em comum”.
FIM
Joaquim
Jorge Carvalho
Ribeira de Pena, 08 de Maio de 2016.